Os telhados de vidro de Kamala e do seu vice

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Embalados por uma aparente onda de popularidade crescente desde que Joe Biden decidiu saltar fora da corrida à Casa Branca, o Partido Democrata dos EUA parece - à primeira vista - ter encontrado em Kamala Harris e o seu “vice”, Tim Walz, a receita para derrotar os republicanos liderados por Donald Trump. Algumas sondagens parecem mesmo indicar isso. E no entanto...

Facto é que Harris e Watz conseguiram uma apoteótica Convenção em Chicago e, acima de tudo, têm feito uma inteligente campanha eleitoral focando essencialmente emoções positivas - para contrastar com o discurso mais divisionista de Trump.

Aliás, exceção a isto mesmo foi o muito elogiado à esquerda discurso de Michelle Obama na Convenção, que a dado momento se tornou um apelo ao black power, quase roçando o racismo de tão extremo e divisionista que o tom subiu, algo que a maioria dos observadores e comentadores simplesmente não consegue ou não quer ver. A hipocrisia é sempre grande nestes assuntos...

De resto, a mensagem democrata tem basicamente sido desprovida de conteúdos. Dito de outra forma, Harris está a fazer uma campanha ao estilo de Trump: sem medidas concretas, com ideias vagas, a puxar aos sentimentos básicos do seu potencial eleitorado e desprovida de grandes preocupações de coerência com o passado.

Também ninguém lhes tem exigido mais. Os republicanos não aparentam ter hoje, reféns da forma trumpista de fazer política, capacidade de discutir qualquer substância; a comunicação social não está a conseguir (ou a querer) questionar os candidatos de forma mais profunda.

Pelo sim, pelo não, Harris evitou, até à semana passada, dar qualquer entrevista ou conferência de imprensa com direito a perguntas. Fê-lo finalmente à CNN (estação manifestamente “amiga” - mas também tal seria expectável) e ainda que as perguntas, segundo foi anunciado, não tivessem sido combinadas com antecedência, o encontro com a jornalista Dana Bash foi gravado e depois editado de forma a que os segmentos foram intercalados com pequenas peças de background que mais pareciam peças promocionais da candidata.

Quanto à entrevista propriamente dita, Bash foi sempre muito soft e permitiu coisas como Harris repetir ad nauseum a mensagem de propaganda “Os meus valores não se alteraram” à pergunta: “Foi pelo fim do fracking e votou pelo Green New Deal. Agora diz que já não quer acabar com o fracking. O que mudou?” Harris nunca explicou o que mudou no seu pensamento, se é que mudou alguma coisa, nunca foi confrontada com a possibilidade de ter suavizado a sua posição relativamente a esta forma exploração de hidrocarbonetos porque lhe iria custar votos, por exemplo...

Aliás, Dana Bash nunca pressionou a candidata em ponto algum, mesmo quando Harris se recusou a responder à provocação de Trump por este ter dito que ela “só se tornou negra há pouco tempo”. Esta foi mesmo a única vez que o rival da entrevistada “entrou” nesta entrevista sobre as presidenciais!

Walz também não ajuda particularmente em aumentar a transparência no discurso político americano, ao contrário do que muitos media querem fazer crer. Desde que foi apresentado como o “vice” de Harris, já afirmou publicamente que tinha utilizado armas “na guerra” (contextualizando, para fazer contraste com Trump), quando na realidade ele nunca foi mobilizado para um cenário de operações ativo; afirmou (na Convenção Democrata) que ele e a mulher recorreram a fertilização in vitro (FIV) para ter os filhos e que Trump e o seu “vice” J.D. Vance são contra este método quando, afinal, o método que o casal utilizou não foi a FIV (usaram métodos para a reprodução, mas que não implicam a inseminação do óvulo em laboratório), nem Trump é contra aquele método reprodutivo...

Claro que tudo isto é peanuts (como dizem os americanos), quando comparado com as alarvidades que Donald Trump e J.D. Vance dizem. É muito triste ver o Grand Old Party de Lincoln, Theodore Roosevelt, Eisenhower ou Reagan nas mãos destes lunáticos. Até quando?!
Mas substancialmente, de Harris sabemos só que irá fazer por repor o aborto como lei federal - agenda que, por questões religiosas, até lhe pode custar o voto negro feminino do Sul, que à partida seria “seu”... - e que deverá continuar as políticas do antecessor.

A não ser que os debates tragam alguma surpresa, isto encaminha-se para se decidir como sempre: pela economia. Ou melhor, pela ideia que as pessoas tiverem de qual dos candidatos lhes puser mais dinheiro no bolso ao fim do dia. E nesse aspeto, os republicanos estão quase sempre em vantagem.


Editor do Diário de Notícias

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