Os sinos a rebate contra a revisão constitucional
O cenário de uma eventual revisão constitucional feita à direita está a fazer os sinos tocar a rebate entre os partidos da esquerda. O Bloco alertou para o “perigo” e não são poucos os comentadores que argumentam que não há necessidade de tal revisão, e que a mesma não deve ser uma prioridade do futuro Governo da AD.
Antes de mais, devemos ter em conta que, se existe uma maioria de dois terços dos partidos da direita, foi porque os portugueses assim o quiseram. Uma maioria de dois terços de direita tem tanta legitimidade democrática para aprovar alterações à Constituição como o teria uma maioria de dois terços de esquerda, se esta última existisse. E alguém acredita realmente que, se o PS, o Bloco de Esquerda e o PCP tivessem tal maioria, não fariam uso da mesma para fazer avançar as suas ideias, eventualmente através de mudanças na Constituição ou da nomeação dos juízes para o Tribunal Constitucional?
Mais: se os portugueses quisessem manter tudo como está, não teriam reduzido de forma significativa os grupos parlamentares destes três partidos. A democracia não é aceitarmos apenas aquilo com que concordamos. Implica saber ouvir e respeitar a vontade popular.
Dito isto, importa perceber o que está em causa quando se fala em rever a Constituição. Tal como lembrou o presidente do Tribunal Constitucional, José João Abrantes, numa entrevista que publicámos na edição online do Diário de Notícias, qualquer revisão do texto fundador da nossa democracia terá de respeitar um conjunto de regras. A saber: não poderá colocar em causa a natureza republicana do regime, a separação entre igrejas e Estado, e os direitos e garantias dos cidadãos. Isto exclui, à partida, medidas como a aplicação da prisão perpétua, que é defendida pelo Chega.
De igual modo, é praticamente impossível termos uma presidencialização do regime ou outras medidas que alterem de forma significativa a nossa ordem constitucional, porque aquilo que separa a AD, a IL e o Chega nessas matérias é muito maior do que aquilo que os une. Por isso, quando alguns falam em “mudança de regime”, não estão certamente a falar a sério. Estão a falar de medidas com as quais não concordam, é certo, como o reconhecimento do papel dos privados e do setor social na prestação universal de cuidados de saúde, ou a retirada do socialismo do preâmbulo, mas não de algo que realmente coloque em causa o regime democrático.
De resto, é pouco provável que, a ocorrer realmente, tal revisão constitucional aconteça sem a participação do PS, mesmo diminuído no Parlamento, pelo que este tema tem o seu quê de Guerra de Alecrim e Manjerona. A AD, que hoje ocupa (também) o centro político e vai buscar votos mesmo ao centro-esquerda, terá todo o interesse em entender-se sobre este e outros temas com o PS, sem fechar a porta a outros. A alternativa seria pior para a AD.
Diretor do Diário de Notícias