Os setenta

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Tudo está eternamente escrito
(Spinoza)
Tudo está eternamente em Quito
(uma rosa)
Mário Cesariny

Depois de ler a excelente entrevista de Luísa Costa Gomes a Isabel Lucas, no Público, admirei a extraordinária e incansável atividade da autora, mas impressionou-me pessoalmente a sua consideração de que os setenta anos marcam uma divisória nas nossas vidas.

Já vários companheiros septuagenários me tinham avisado disso, mas dou-me conta que os setenta, que para mim já vão em setenta e quatro, são a idade em que o corpo começa a dar sinais de maior usura e o espírito a interrogar-se sobre que conclusão dar à nossa história.

Neste último aspeto, a Luísa não parece ter dúvidas nem se pôr questões, tantos e tão variados são os planos que concebe para o futuro. Quem tem um caráter mais melancólico e menos ativo, como eu, é um alvo mais fácil para a acédia, essa doença que a bílis negra vem instalar em nós e nos imobiliza.

Mas não deixa de ser curioso, embora aritmeticamente simples e evidente, que os nossos setenta anos nos remetam para o passado dos nossos vinte anos, exatamente situado nos anos 70 do século passado.
Os anos setenta foram os anos da Revolução e a transformação que neles vivemos é difícil de entender e fazer entender nos dias de hoje. Nós próprios estranhamos os personagens que fomos, mas nunca rejeitaremos a marca profunda que esse tempo nos deixou, o enorme clamor de esperança que atravessou todo o país, a festa e a luta, os sonhos e os medos, de que fomos irreversivelmente feitos naqueles anos fundadores.

Olhamos para o passado hoje para procurarmos descortinar as raízes do futuro? Cada vez mais entendemos que a velocidade da História ultrapassou todas as nossas capacidades de previsão, enquanto os vários desastres que estamos já a viver nos apontam os rumos mais sinistros. Mas a imprevisibilidade da História abre mais possibilidades ao futuro do que aquelas que a catástrofe presente nos anuncia. Por isso nada está determinado à partida.

Como manter, neste estado de coisas, a determinação e a vontade de fazer que nos mostra Luísa Costa Gomes? Não nos deixando arrastar pela acédia, recusando o culto indolente da melancolia e afirmando, do alto dos nossos setenta anos: “Aqui estamos e estaremos e até ao fim podem contar connosco”.

Nós afirmamos a vida contra tudo o que a abafa e estrangula, nós não esquecemos a “pequenina luz bruxuleante” que Sena nos mostrou e que, contra tudo e contra todos, inflexivelmente brilha. Ou, no dizer de Manuel Gusmão, “contra todas as evidências a alegria”.

Assistimos a tantas mudanças, que nos parece termos vivido em vários mundos diferentes. Como viajou no tempo a nossa geração! A vantagem da velhice, dizia Victor Hugo, é coexistirem em nós todas as idades. Mas hoje coexiste connosco uma sucessão de mundos mudados, que pode abrir para o futuro uma pluralidade de mundos possíveis, se não os quisermos matar à nascença.

Todos os instrumentos concebidos pelos homens, desde a pedra polida à energia nuclear, têm servido tanto ao instinto de morte, que nos leva à guerra e à miséria, como ao instinto de vida, que nos leva à criação, ao respeito pelo que vive e às revelações do amor. Nem tudo está eternamente escrito...

Aos setenta anos é altura de nos levantarmos e de virmos oferecer novas palavras ao mundo.

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