Os polícias também são filhos da miséria?

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Quando, em 2005, o agente da PSP Irineu Diniz foi assassinado na Cova da Moura, eu trabalhava num jornal diário chamado 24Horas. Impressionado com os factos então relatados - ele fora abatido com disparos de armas de guerra, supostamente por um grupo de traficantes de droga, e sofreu 24 tiros -, quis fazer algo simbólico, que mostrasse o respeito e a admiração que o jornal e os seus leitores tinham pelo trabalho dos polícias.

Resolvi propor à administração, na altura liderada por Luís Delgado, que autorizasse doar toda a receita da venda do jornal desse dia à família do polícia - o Luís Delgado nem hesitou no “Sim!” e, algumas semanas depois, fui a uma aldeia perto de Vinhais, Distrito de Bragança, entregar à mãe de Irineu Diniz um cheque no valor de alguns milhares de euros (já não me lembro da quantia exata) correspondentes à compra em banca, pelos leitores, de 40 ou 50 mil exemplares de jornais, que era o que nessa época esse jornal 24Horas vendia.

Nessa zona de Vinhais pude verificar as origens deste agente da PSP assassinado: a ruralidade antiquada e quase improdutiva da zona que encontrei, as casas degradas ou mal remendadas com tijolo e cimento à mostra, o isolamento e a dificuldade de acesso ao local, a população muito idosa e cansada denunciavam um Portugal abandonado e marginalizado, ignorado pelo poder central, pelo próprio poder local, pelos investimentos do Estado, pelos fundos europeus, pela globalização e pelos negócios privados da Lusitânia empresarial. Parecia que estava a ver um antigo retrato a preto e branco da miséria generalizada do fascismo português ou... os bairros degradados da Grande Lisboa do século XXI, onde a semana passada a revolta estalou!

Foi também de uma zona discriminada, de produção ancestral de miséria e da manutenção contemporânea da exclusão social, que Irineu Diniz emigrou para Lisboa, à procura de uma vida melhor. Essa esperança morreu na Cova da Moura, onde vão morrendo também as esperanças de tantos.

Quanto mais sabemos sobre as circunstâncias da morte de Odair Moniz mais provas temos para sustentar a pior das teses: foi um homicídio, talvez acidental, mas um homicídio. Não é um juízo precipitado, é, infelizmente, o que os dados que nos vão chegando apontam - afinal, tudo indica que ele não estava, naquele momento, a representar um perigo para ninguém e os disparos que o mataram, salvo informações novas que venham desmentir o que até agora se sabe, não são justificáveis.

Se eu hoje dirigisse um jornal talvez propusesse à minha administração doar as vendas de um dia à família de Odair Moniz. Mas, bem o sei, isso não alteraria o estado de revolta que as populações dos bairros racializados da Grande Lisboa sentem - a exclusão social que na Cova da Moura, no Zambujal e noutros bairros provoca toda esta violência, tão semelhante à da pequena aldeia de Vinhais do polícia Irineu Diniz, não se resolve com caridade de ocasião, nem, como se tem tentado até agora, com saraivadas de balas e pancada de bastão. E, por isso, não é só a polícia que tem de melhorar a relação com estes bairros.

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