Os outros seres humanos

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As minhas recordações de infância e juventude, velhas de mais de sessenta anos, são pontuadas por seres humanos que eu não via exatamente como me via a mim. No liceu, tive um colega judeu. Outro, cuja mãe era belga. Um outro que parecia chinês (na verdade, era macaense). Na faculdade aumentou a diversidade: negros, mestiços, orientais.

Mas havia uma característica que lhes era transversal: viviam, como eu, inseridos numa família. Na sua maioria, no ensino secundário, residiam com os progenitores - uma minoria escassa apenas com um deles - e os irmãos. Habituei-me a este contexto familiar, comum na sociedade portuguesa de então. De muitos deles conheci o pai, a mãe e um irmão ou irmã. Já na universidade, o afastamento da família era habitual. Mas era um afastamento macio, feito de partidas e chegadas, de cartas e telefonemas, de presunto e enchidos, de adeus e saudade.

O afastamento dos imigrantes não é, em geral, assim: é duro, feito de lágrimas amargas, ameaçado por viagens longas e arriscadas, para fundear, solitário, pobre e triste, num país estranho, de língua incompreensível, hábitos insólitos e outros deuses. É um afastamento para sobreviver.

Muito tempo antes de ter aprendido algures que a família era a célula base da sociedade, já eu considerava estranho que alguém não estivesse inserido numa família, ainda que, por qualquer razão, se encontrasse afastado dela.

Vem isto a propósito das recentes controvérsias sobre a imigração e os imigrantes. Questões como ser ou não exigido visto de entrada, condições para aquisição da nacionalidade portuguesa ou do estatuto de residente, prazos legais iguais para todos ou mais curtos para os falantes de português, situo-as no plano do discutível. Tenho preferências, mas admito perfeitamente debatê-las.

Mas há um ponto que me parece insuscetível de debate (recuso o modismo de lhe chamar “linha vermelha”): as medidas relativas à imigração não devem, não podem, contrariar, dificultar ou impedir a estabilização da vida familiar. Não compreendo como alguém se pode opor ao reagrupamento familiar dos imigrantes. Pior ainda: orgulhar-se e gabar-se de se opor ao reagrupamento familiar, como se este fosse uma anomalia, uma coisa perversa.

Ser contrário ao reagrupamento familiar é ser favorável à erosão dos laços familiares, à dissolução da família, à degradação da condição humana. Dos visados, mas também daqueles que, defendendo tal posição, parecem rejeitar a humanidade do outro.

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