Os novos reis do tabuleiro

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Uma das minhas maiores frustrações é não ser capaz de jogar xadrez a um nível acima do básico movimento das peças. Aquele tabuleiro provoca um fascínio inegável: há uma combinação única de estratégia, habilidade mental e complexidade, que premeia quem é capaz de pensar mais além do que o adversário. Mas, neste jogo de mentes brilhantes, admito, tenho “cérebro de passarinho” (em minha defesa, sabe-se hoje que muitos pássaros têm mais neurónios que os mamíferos, incluindo os primatas).

Ora, não sei se o leitor se deu conta, mas o mundo tem um novo rei do xadrez. Trata-se do indiano Gukesh Dommaraju, que aos 18 anos se tornou o mais jovem campeão mundial de sempre, depois de na final ter derrotado o defensor do título, o chinês Ding Liren.

O assunto morreria aqui não fosse o xadrez um dos símbolos de soft power  mais disputados pelas superpotências da geopolítica mundial, sobretudo desde que Bobby Fischer e Boris Spassky protagonizaram em 1972, diante de um tabuleiro, o maior embate direto entre Estados Unidos e a ex-URSS durante o período da Guerra Fria, transcendendo o jogo e tornando-se um campo de batalha política e cultural. Fischer quebrou um domínio soviético de décadas, o que foi interpretado como uma vitória simbólica dos EUA.

Mas houve mais duelos cheios de significado para além do tabuleiro, como aquele em que Garry Kasparov, jovem símbolo da Perestroika, derrotou Anatoly Karpov, o representante da nomenklatura soviética, em 1985. Ou, anos antes, em 1978, quando o desertor Korchnoi foi “castigado” por Karpov num duelo carregado de tensões políticas, espionagem e até um suspeito iogurte de mirtilo.

Em 1996 e 1997, já o xadrez antecipara o tão atual debate tecnológico, quando Kasparov enfrentou o computador Deep Blue. E o prodígio norueguês Magnus Carlsen pode não ter sido um ícone político, mas o seu impacto em 2013 transcendeu o jogo, simbolizando a era da globalização e digitalização.

Mas voltemos ao mais recente duelo: pela primeira vez, o título foi disputado por dois jogadores asiáticos, com China e Índia a refletirem no tabuleiro as mudanças no equilíbrio de poder geopolítico, num contexto em que as duas potências asiáticas emergem como protagonistas globais em várias frentes. Mais: neste duelo particular entre as duas grandes potências asiáticas, Gukesh D - não sendo o primeiro campeão mundial indiano (foi Anand, em 2000) - consegue arrebatar a coroa no ano em que a Índia superou também oficialmente a China como o país mais populoso do mundo. Há um novo rei no tabuleiro e é melhor habituarmo-nos a ele.


Editor do Diário de Notícias

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