Os Maridos das Cesarinas: "ser" e "parecer"
1 A opinião pública vive mais uma agitação em torno de notícias que relatam episódios de supostas irregularidades quanto a impedimentos de políticos.
São situações que até têm a curiosidade de se distribuírem por ministros e ministras, sendo estas que protagonizam os casos com mais impacto devido ao recebimento de dinheiros em procedimentos com a intervenção dos seus maridos.
A pergunta é esta: se a lei foi modificada em 2019, o que ficou de fora para gerar estas dúvidas em conflitos de interesses não acautelados?
2 O assunto é complexo e enfrenta-se um trabalho de filigrana jurídica, o qual nem por isso deve travar o pensar e o agir, rumo a um melhor regime.
A atual Lei nº 52/2019 até tem sido objeto de crítica por impor desproporcionadas constrições à atuação privada dos familiares dos governantes, antes e durante o exercício das suas funções.
A grande verdade é que a perspetiva deve ser substancial, e não meramente formal. Recorde-se a certeira regra segundo a qual o Tribunal de Contas, por exemplo, fiscaliza qualquer entidade desde que receba dinheiros públicos, tanto faz ser "pública", "privada" ou "social".
3 É de considerar que a legislação tem se ser corrigida, contemplando situações de impedimento ainda não previstas e para cuja cobertura a criatividade na obtenção dos dinheiros públicos sempre aponta.
Desde logo, é óbvio que o problema não se resolve, quanto à influência numa empresa, se o capital for inferior a 10%: a intervenção efetiva de um governante não se aquilata pelo valor do capital social ou por cargos de gerência. Antes, sim, pelo domínio fáctico que se prove exercer sobre a sua atividade, tal juízo dispensando rigores formais.
Depois, não se deve ficar descansado por se tratar de entidades sem fins lucrativos: bem se sabe que algumas delas desenvolvem atividades comerciais, sendo neste ponto muito inteligente a lei fiscal, que as regula como organismos lucrativos, desconsiderando qualquer benefício fiscal que pudessem receber por não terem teoricamente fins de lucro.
Finalmente, parece claro que o conflito de interesses não existe apenas quanto aos organismos - sejam empresas, associações ou fundações - que se integrem no departamento governamental a que pertença o governante. Pensar assim seria a maior das ingenuidades. O melhor, a bem de todos e dos próprios, é pura e simplesmente proibir qualquer atividade com qualquer departamento.
4 Tomando por referência o divórcio que Júlio César decretou à sua segunda mulher, a qual nunca o traiu amorosamente, mas ainda assim não deixando dúvidas na corte romana sobre a seriedade de tal relação dissolvendo-a, este é um "preço" que os governantes - agora também as cesarinas - têm de pagar para se manter o mínimo da decência aparente que a integridade democrática supõe.
Em Estado de Direito Democrático, o que "é" tem de "parecer" igualmente. Se os governantes já sofrem limitações severas na sua privacidade, não se julga ilógico que venham a sofrer outras restrições nas suas atividades económicas, "sacrifício", apesar de tudo, moderado pelo pouco tempo que as mesmas duram por força do saudável princípio republicano.
Constitucionalista e Presidente do OSCOT - Observatório de Segurança, Criminalidade Organizada e Terrorismo