'Os Lusíadas' de Luís de Camões – da história e da épica

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Em 1516 André de Resende declarava no prólogo ao Cancioneiro Geral a necessidade de se escrever e trovar os feitos tanto nos espaços africanos como nas partes da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índias. Logo na primeira metade de Quinhentos foram elaboradas, a par das crónicas régias, Histórias Gerais sobre a presença portuguesa no espaço asiático, sendo impressos, a partir de 1551, os vários livros da História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, de Fernão Lopes de Castanheda, e as sucessivas décadas da Ásia de João de Barros. A par deste registo historiográfico aparecem poemas épicos que, à semelhança do que acontece pela Europa, enaltecem um presente histórico, o que, no caso português, se traduz nas ações que concretizaram um domínio sobre outros espaços, os asiáticos. É neste contexto que surgem Os Lusíadas e as épicas de Jerónimo Corte Real e Francisco de Andrada sobre os cercos à praça de Diu.

Estes poemas seguem o princípio aristotélico de não ser ofício de poeta narrar o que aconteceu, mas sim o que poderia acontecer. Deste modo, não diferiam o historiador do poeta pelo facto de se escrever em verso ou em prosa, mas sim porque o primeiro fala do que aconteceu e o segundo do que poderia ter acontecido. Ora, a História, entendida como um reservatório da memória coletiva, produtora da seleção dos factos e forjadora da imortalidade, é matéria poética, e Camões usa-a superiormente.
Com efeito, as estrofes camonianas sobre a partida de Lisboa de Vasco da Gama evocam tanto Fernão Lopes de Castanheda que refere as gentes de Lisboa que choravam de piedade dos que se iam embarcar, crendo que haviam todos de morrer, como João de Barros, quando escreve que Belém era praia das lágrimas para os que vão e terra de prazer aos que vêm. Ora, em Camões essas atmosferas repercutem-se nos versos do canto IV: "Em tão longo caminho e duvidoso /por perdidos as gentes nos julgavam, /As mulheres c"um choro piedoso,/ Os homens com suspiros que arrancavam."

Através da leitura desta épica vislumbra-se um Mundo Novo, protagonizado por atores coletivos e individuais, no qual a primeira viagem de Vasco da Gama funciona como fio que une as memórias de um mais ou menos longínquo passado. Além disso, a par de factos históricos menos conhecidos, Camões introduz cenas mitológicas como o Concílio dos Deuses ou a simpatia de Vénus pelos argonautas portugueses. Por seu turno, a seleção dos acontecimentos desvenda uma história que enaltece a construção de um império, aquele em que o Sol, logo em nascendo, vê primeiro; / Vê-o também no meio do Hemisfério,/ E quando desce o deixa derradeiro (Os Lusíadas, I, 8); este é o que rivaliza com o de Filipe II, aquele onde o sol nunca se põe.

O poeta não deixa, no entanto, de expor os aspetos mais difíceis e sombrios desta empresa e fá-lo em diferentes momentos. Socorre-se, por exemplo, do monólogo de um velho, de aspeto venerando, que, no Restelo, no momento da partida de Vasco da Gama, critica os pesados custos de uma tão árdua empresa. D. Manuel, o próprio monarca que determina cortar os mares, buscar novos climas, novos ares, é, em sonho, alertado para os custos da dura guerra (Os Lusíadas, IV, 74).

A experiência da viagem flui neste poema épico. Com efeito, após uma curta estada no norte de África, onde combateu, em março de 1553 o poeta parte para a Índia na nau São Bento, chegando a Goa no mês de setembro. O vi claramente visto do fogo-de-santelmo, ou a detalhada e subtil descrição de uma tromba de água (Os Lusíadas, V, 18-19), transmitem o experiencialismo de um tempo novo. Deambulando por cerca de 15 anos no espaço asiático, Camões participaria numa série de ações que visavam defender a presença portuguesa: logo no ano da sua chegada participa no combate contra o rei de Chembé e, em 1554, na batalha de Mascate.

A par do deslumbramento pelas novas terras, por novos costumes, outras gentes, o poeta expôs o modo como foi exercido o poder português no longínquo Oriente. Camões chega até a assinalar as disputas que aí se travavam, como as que ocorreram entre Pero de Mascarenhas e Lopo Vaz de Sampaio (1527-1528) por causa do exercício do cargo de governador. Mascarenhas emerge, então, como aquele que, apesar de ter sido afastado do governo, soube ter justiça nua e inteira. Na Índia Camões acompanharia o seu curto vice-reinado (1554-1555), tendo sido por ele enviado ao mar Vermelho na frota de Manuel de Vasconcelos. Em 1555 seria representada para o novo governador Francisco Barreto a sua peça Filodemo. Já a sua sátira Os Chamados Disparates da Índia levá-lo-ia ao desterro para as Molucas, tendo naufragado no rio Mecon, ainda que dos procelosos baixios tenha escapado (Os Lusíadas, X, 128). O novo vice-rei D. Constantino de Bragança (1558) conceder-lhe-ia o perdão, quando ele estava já, de novo, em Goa.

Durante o governo de D. Francisco Coutinho surge impressa uma ode sua nos Colóquios dos Simples e das Drogas e Cousas Medicinais da Índia, de Garcia de Orta (1563).

Aquando do regresso a Lisboa em 1568, fica durante algum tempo em Moçambique, acompanhando, na nau Santa Clara, em novembro de 1569, o seu amigo Diogo do Couto a quem pede para rever Os Lusíadas. Este cronista da Ásia, continuador da obra de João de Barros, comentará o poema até ao final do canto IV, assim se entretecendo o ofício de quem escreve a História com o do poeta. Em abril de 1570 chegam a Cascais e dois anos depois é impressa a obra que o celebrará.

Historiadora. Professora universitária

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