Os ‘Genocidas’

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Com a licença do recém-finado Carnaval, que consagrou a Escola de Samba Beija-Flor como campeã do desfile no Rio de Janeiro pela 15.ª vez, é o cinema que continua a dominar o noticiário no Brasil, depois de o filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, ter sido consagrado como vencedor de um Óscar, o primeiro do país sul-americano.

Mas desta vez não falaremos dessa obra, aplaudida no mundo, mas de outra, Genocidas, que não foi nem produzida ainda.

Comecemos a contar a história de Genocidas desde o princípio, isto é, desde o primeiro governo eleito democraticamente após a ditadura que Ainda Estou Aqui aborda. Em dezembro de 1991 foi aprovada a Lei 8313 de incentivo a ações culturais, que ficou conhecida por Lei Rouanet, em homenagem a Sérgio Paulo Rouanet, secretário de Cultura de Collor de Mello.

Na campanha eleitoral de 2018, o candidato Jair Bolsonaro, numa tentativa de estrangular a classe artística, quase unânime nas críticas ao então deputado de extrema-direita, prometeu acabar com ela. Quase unânime porque um ator, Mário Frias, intérprete da novela juvenil Malhação, se revelou fervoroso bolsonarista e foi até chamado para a Secretaria Especial da Cultura, integrada no Ministério do Turismo, depois da execução sumária do Ministério da Cultura, sob Bolsonaro.

No cargo, o ator de Malhação indicou para a Secretaria Nacional de Desenvolvimento Cultural o correligionário Rodrigo Cassol Lima, hoje presidente do Passos da Liberdade, canal de YouTube com apenas um vídeo publicado. É o Passos da Liberdade, conta investigação do portal UOL, que vai produzir o citado Genocidas, filme que “visa correlacionar os horrores dos genocídios históricos na Europa com factos contemporâneos na América Latina”, usando no título, provavelmente de forma irónica, uma das alcunhas de Bolsonaro, genocida.

E como vai produzir? Com 861 mil reais, cerca de 132 mil euros, concedidos por deputados bolsonaristas, através do Ministério da Cultura, que voltou a existir sob Lula da Silva, graças a um expediente, as Emendas Parlamentares, que permitem aos congressistas, até aos da oposição, administrar fatias do Orçamento.

Esses deputados bolsonaristas transferiram as verbas para o Passos da Liberdade filmar Genocidas na Arménia, Hungria, Itália, Polónia, Rússia, Alemanha e Brasil à conta do contribuinte brasileiro.

Entre eles, Eduardo Bolsonaro, o terceiro filho do ex-presidente, crítico da Lei Rouanet de incentivo à arte e que chamou a Walter Salles “psicopata” por fazer um filme sobre uma “ditadura inexistente”.

E o próprio Frias, que classificou Ainda Estou Aqui, premiado nos Óscares, nos Globos de Ouro, nos Goya, em Veneza, em Vancouver, em Palm Springs, em Miami, em Roterdão, em Nova Iorque e em São Paulo, como “propaganda comunista” e que, quando era Secretário da Cultura, chegou a sugerir a transferência da Lei Rouanet para movimentos armamentistas.

Jornalista, correspondente em São Paulo

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