Os filhos não nos pertencem. São de todos!
Temos assistido à divulgação de casos em Portugal (e um pouco por todo o Mundo) que envolvem crianças e adolescentes e suas famílias. Retratos "reais" em que menores são vítimas de maus-tratos e negligências por parte das suas famílias. Apesar do trabalho desenvolvido, do conhecimento produzido, das campanhas de sensibilização, dos programas de educação parental, dos dispositivos que estão no terreno, existe ainda um longo caminho a percorrer na Proteção de Crianças e Jovens.
Alguns destes acontecimentos, pela sua severidade, impressionaram todo um país. Chorámos. E refletimos sobre o funcionamento destas famílias, sobre um país que não conseguiu proteger estas crianças. Salvou outras. No entanto, quando uma criança (bastaria uma e foram tantas) morre vítima de violência por parte dos progenitores ou da sua família - Impõe-se aceitar que não fazemos o suficiente. Todos nós.
E mudar.
Todos os dias, sem exceção, crianças e jovens sofrem maus-tratos - seja mau-trato físico, mau-trato psicológico/emocional, abuso sexual, abandono ou negligência. Na maioria destes casos, o agressor tem um vínculo familiar com o menor. Acontece "no lugar" onde a criança deveria sentir segurança, afeto positivo, bem-estar e confiança, no seio familiar.
E quase sempre, coexistem diferentes tipos de maus-tratos na mesma situação. Quando um progenitor utiliza um castigo físico para "educar" o seu filho, quando "lhe dá uma palmada", ou várias, ou murros, ou pontapés, ou o atira contra a parede (...) não está a atingir "apenas" o seu corpo. Este tipo de violência, que acontece frequentemente de forma reiterada e os estudos mostram-nos que em muitos casos, vai-se agravando ao longo do tempo, tem grande impacto a nível emocional e psicológico - com consequências negativas ao longo do crescimento e desenvolvimento (físico, psicológico e social) destas crianças.
A linha pode ser muito ténue. Se não podemos bater ou insultar um adulto, porque o podemos fazer com uma criança? Porque é nosso filho? Os "sentimentos de pertença ou posse" ou o vínculo familiar não pode dar o direito a maltratar. Seja quem for, independentemente da sua idade. Existem muitas famílias que não conseguiram "quebrar" o ciclo de violência, sofreram enquanto crianças maus-tratos e na fase adulta, como educadores "seguem o modelo educacional" recebido. Paremos para refletir naquilo que estamos a "dar e ensinar" às nossas crianças. Se ser pai ou mãe, não é um momento e sim um caminho, procuremos outras formas de educar e resolver conflitos. Mais positivas.
Provavelmente todos nós já assistimos a situações em que pais/cuidadores negligenciaram ou agrediram os seus filhos. E o que fizemos? Intervimos? Denunciámos?
Quando à saída daquela festa, vimos um pai ou uma mãe visivelmente embriagados, a conduzir o carro e levar toda a família para casa. Quando no parque ouvimos e vimos aquela mãe ou pai dar um estalo no filho de seis/sete anos, porque ele insistiu que queria ficar mais tempo a brincar e enquanto gritava um "se não me tens respeito, tens que ter medo"; "não me ouves de uma maneira ouves de outra"; "se choras levas ainda mais"; "também levei muitas e estou cá", e "ou tu não tens quereres, eu é que mando" etc. Quando, numa ida à praia, vemos crianças que ficam sem vigilância durante horas, porque os adultos estão na esplanada a beber imperiais. Quando sabemos que pais conduzem de forma perigosa levando os seus filhos dentro do carro. Quando pré-adolescentes estão completamente alcoolizados numa zona de restaurantes e bares, onde fomos jantar. Ou em tantas situações - a que todos nós já assistimos em que crianças e jovens estavam (estão) em risco ou em perigo.
E a questão permanece. Quantos de nós já estivemos perante uma destas situações? E o que fizemos? Intervimos? Denunciámos?
Não? Porquê? Tivemos medo? Imagine aquele "miúdo".
Aquelas crianças não nos pertencem? Não temos nada a ver com isso? Temos sim!
Desde o nascimento que as crianças, perante a lei e perante a constituição, têm direito à proteção da Sociedade e do Estado, com o objetivo de possibilitar um crescimento e desenvolvimento integral. Devem ser protegidas do abandono ou abuso por parte das famílias. O Estado e a Sociedade somos todos nós. Todos e cada um, porque nesta matéria a responsabilidade coletiva não pode e não deve diluir a responsabilidade individual.
As CRIANÇAS SÃO DE TODOS. Não pertencem aos pais ou às famílias onde nascem.
Façamos todos. É urgente mudar este paradigma. Porque limita. Porque não protege. Porque não salva. Porque pode matar.
Psicóloga, especialista em Psicologia Clínica e da Saúde