Os festejos do Natal e a banalização da morte
Estamos na quadra natalícia, altura em que costumamos desejar a todos, familiares, amigos e conhecidos, Feliz Natal e Ano Novo com muita saúde e cheio de prosperidades.
Acreditamos, pura e simplesmente que, com este ou outros desejos e dizeres similares, ou diferentes, deixamos de ser hipócritas, sem dar conta que estamo-nos a enganar a nós próprios, por pensarmos que lavamos a raiz da nossa alma com meia dúzia de palavras de circunstância.
Este rebate tardio da consciência aconteceu-me quando tinha acabado de enviar um email aos meus familiares, amigos e conhecidos desejando-lhes Boas Festas de Natal e pedindo, por favor, que desfrutassem a vida.
Confesso que, neste momento, sinto vergonha de mim próprio, por ter participado, sem reflectir, na prática corrente, desejando Boas Festas, como se se pudesse esperar que isso possa vir a acontecer, sabendo como impera o desconcerto, sobretudo, no Médio Oriente e na Europa.
Quer queiramos, quer não, o mundo conturbado, em que vivemos, é-nos apresentado e posto a nu, diariamente, nos jornais, na rádio e na televisão e nós continuamos a desfrutar a vida, muitas vezes de forma impávida e serena, banalizando a morte atroz, em especial, das crianças e bebés, como se isso não nos dissesse respeito.
Quase ninguém ignora estes factos, porque é difícil encontrar um jornal, ouvir uma emissão radiofónica ou ver um canal televisivo, de maior ou menor audiência, que não se refira à guerra em Gaza, no Líbano, na Ucrânia e agora na Síria.
Em vez de escutarmos atentamente os acontecimentos, analisarmos e meditarmos no seu conteúdo, apenas ouvimos estas notícias e, por se terem tornado habituais, de forma consciente ou inconsciente, deixamos de lhes dar importância que merecem.
Até as imagens horrorosas e dramáticas visualizadas, quanto mais se vão repetindo, quase diariamente, perdem a força e o impacto inicial e se transformam em meras repetições sem significado relevante, como se não estivéssemos a observar seres humanos em agonia, eivados de profunda dor e sofrimentos indescritíveis, estampados nos seus rostos
ensanguentados, com semblantes pintados de infelicidade, mas meras representações de figuras em abstracto.
É chocante ver alguns dos nossos comentadores, pomposamente apresentados como especialistas e altamente credenciados, a debitarem os seus profundos conhecimentos, procurando demonstrar qual dos contendores tem mais razão e qual será a melhor forma de derrotar militarmente o adversário.
Para gáudio pessoal, afirmam, despudoradamente, que apoiam entusiasticamente, ou até consideram insuficiente o aumento do orçamento destinado para a guerra, apresentando como argumento, imbatível, o facto do orçamento do inimigo ser muito maior.
Por este andar só pararemos quando todos os países tiverem a bomba atómica para poderem esgrimir e ameaçar como poderosa arma dissuasora. E, já agora, por que não, também cada cidade e todos os bairros, particularmente o nosso!
Nenhum deles alguma vez perguntou a si próprio por que é que não se aposta, forte e continuadamente, no orçamento para se alcançar a paz.
Na vã verborreia de revelar conhecimentos, mencionam os pormenores das guerras com uma ligeireza doentia dando a entender que dominam toda a informação a esse respeito.
Devo ter lido e escutado mal, porque nenhum deles se referiu ao facto de, em solidariedade com Gaza, as igrejas de Belém cancelaram as celebrações do Natal, por tal ser impossível, enquanto as pessoas em Gaza estão a sofrer o genocídio e as crianças continuam a ser massacradas de forma brutal. Razão pela qual todos os dirigentes das igrejas, em Jerusalém, terem decidido que as celebrações do Natal seriam apenas por rezas e não com festividades.
Seria bom que, antes de comemorarmos, alegre e entusiasticamente, a quadra natalícia, diante do presépio, em vez de vermos ali o recém-nascido menino Jesus o imaginássemos em Gaza, ou em qualquer outra parte do mundo, dilacerado pela guerra, a ser retirado dos escombros das habitações bombardeadas sem sabermos se respira o sopro da vida.
Escreveu Bill Bryson que “a sobrevivência na terra é um assunto complicadíssimo. Dos bilhões e bilhões de espécies de seres vivos que existem desde o raiar dos tempos, a maior parte - 99,99 por cento - já não
anda por cá. O facto é que a vida na Terra não só é breve como também de uma fragilidade deprimente”.
Esquecemo-nos, com muita frequência, como somos uns grandessíssimos sortudos, que a vida na Terra se extingue e é povoada por pessoas como Alanson Bryan que, em 1907, quando se apercebeu que tinha matado “os últimos três espécimes de mamos negro, uma variedade de pássaro das florestas que só fora descoberto na década anterior, escreveu que a notícia o enchera de alegria”.
Nesta quadra natalícia lutemos pela afirmação e defesa da vida, sem banalizar a morte, seja de quem for. Já chega os familiares, amigos, conhecidos e desconhecidos que nos deixam por causas naturais, encerrando o ciclo da existência.
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia