Os factos
1. Num dos seus livros mais pessoais, Philip Roth, carregado da costumeira ironia, mostra como os nossos maiores inimigos são, muitas vezes, os nossos melhores professores. Em Os Factos, publicado em 1988, Roth prova-o através da relação com a sua primeira mulher. "Quando escrevo ficção dizem que é autobiografia, quando escrevo autobiografia dizem que é ficção", troçaria, sobre as reações ao livro. A política também é feita desses equívocos e, na semana que passou, das mesmas lições. Há adversidades que se tornam boas tutoras. Vamos, então, aos factos da semana.
2. Carlos Moedas é candidato à Câmara Municipal de Lisboa, com o apoio do PSD, do CDS e de uma multidão de partidos de que o leitor nunca ouviu falar. A Iniciativa Liberal não apreciou o ajuntamento e pôs-se à parte. Assim, por um lado, a IL mantém-se fiel à sua estratégia de ideias antes de figuras e de quadros próprios antes de chapéus-de-chuva alheios. A implantação local é um passo fundamental para o estabelecimento de novas forças partidárias, e os liberais sabem-no. O desafio de manter o seu ritmo de crescimento eleitoral (legislativas-presidenciais-autárquicas) é tão apetecível quanto imprevisível, na medida em que a aposta na inexperiência se traduzirá sempre num tiro no escuro. Por outro lado, caso a diferença entre o resultado de Moedas e Medina corresponda minimamente à percentagem do candidato liberal, a IL será responsabilizada por manter o poder socialista na capital do país e, igualmente relevante, por não ter contribuído para isolar o Chega da direita democrática. Faltam seis meses; falaremos entretanto.
3. Na direita institucionalizada, a estrada não tem melhor pavimento. O tiro de partida saiu, aliás, algo ao lado. Desde o secretário-geral do PSD anunciar candidatos do seu partido sem os avisar, a um vice-presidente do partido desmentir a direção que integra, ao presidente do PSD antecipar o lançamento de Moedas por capricho e implicação com notícias que o davam como certo, ao líder do CDS entregar de bandeja o apoio ao candidato do PSD sem ter em conta os 21% que o seu partido representa em Lisboa ou garantir qualquer lugar, a direita continua vítima do seu maior defeito: um amadorismo político de causar euforias no Largo do Rato. Não é por acaso, como se vê, que o PS governa e manda no país. É que não há nada melhor.
4. Vemos também, por este início de ciclo autárquico, que a paisagem política está ainda sob influência das eleições presidenciais. A intervenção de Aníbal Cavaco Silva, ontem, num evento online das mulheres sociais-democratas, é um exemplo disso. Quando Cavaco aconselha o PSD a apontar baterias ao Partido Socialista e a falar menos dos demais partidos, fica claro que não apreciou o discurso de Rui Rio na noite das presidenciais, essencialmente focado no Chega. E o ex-primeiro-ministro e antigo Presidente da República tem razão. Rio transformou uma vitória do centro-direita numa análise aos resultados de Ventura, dando origem a um momento verdadeiramente bizarro. Mas, mais do que a vigilância amiga ao seu partido, Cavaco Silva demonstrou uma preocupação para com a degradação da democracia portuguesa. Os seus argumentos, como é hábito, ficaram pelos factos (lá estão eles). A falta de transparência orçamental, já denunciada pela presidente do Conselho de Finanças Públicas, o défice democrático das nossas lideranças, já exposto pelo The Economist, e a remoção do presidente do Tribunal de Contas, que Cavaco chegou a condecorar. Não sendo um fundador da República, não deixa, com 81 anos, de dar o peito às balas por ela. Merece todo o respeito. E toda a atenção.
Colunista