Os extremos da latinidade tocam-se
Parece estranho, mas acho que a minha ligação a Dinu Flămând, poeta romeno tradutor de Fernando Pessoa, começou com a atração pela filatelia que senti enquanto criança. Deixei-me fascinar por uma Roménia que, além das belas ilustrações que tinham os seus selos - aliás, como todos os outros dos países do Pacto de Varsóvia -, mostrava uma língua que eu conseguia perceber, pelo menos em comparação com o checo ou o polaco e, sobretudo, com o enigmático húngaro. Por alguma razão chamam aos romenos “latinos de Leste”. Curiosamente, vários desses “latinos de Leste” sentem ter muito em comum connosco, os portugueses, que somos uma espécie de “latinos do Ocidente”, e Flămând é um deles, como o prova o livro Cadeira à Janela, traduzido por Corneliu Popa e editado pela Guerra & Paz, escrito quando a pandemia surpreendeu o poeta em Lisboa, obrigando-o ao confinamento numa cidade em que se sente em casa, como já me contou.
Quem quiser conhecer Flămând e a sua poesia tem esta quinta-feira uma bela oportunidade em Lisboa. A moderna Roménia, que apesar das décadas de obediência forçada a Moscovo na era comunista nunca deixou de olhar para Paris como farol cultural, faz parte da Francofonia, e o Instituto Cultural Romeno (ICR) e a Embaixada da Roménia decidiram organizar na Fnac Chiado às 18.00 horas uma edição do Printemps des Poètes (Primavera dos Poetas) em que, além do lançamento do livro de Flămând, haverá leitura de poemas em português, francês e romeno, com a participação de Luís Filipe Castro Mendes, José Manuel de Vasconcelos, Ana Marques Gastão e Fernando Pinto do Amaral.
Entre os escritores portugueses que farão companhia a Flămând, estão um colunista do DN, que muito aprecio, e uma antiga jornalista, hoje consagrada poeta e ensaísta, com quem convivi de perto quando a redação era no emblemático edifício do n.º 266 da Avenida da Liberdade, o qual valeu a Porfírio Pardal Monteiro o Prémio Valmor de 1940. Mas foi Dinu Gindu, diretor do ICR, quem me falou primeiro deste evento, num almoço que até esteve para acontecer no Cantinho Romeno, restaurante na Rua Carlos Mardel onde há uns anos conheci Flămând. Na altura, as honras da apresentação foram feitas por Gelu Savonea, então vice-diretor do ICR, entretanto regressado a Bucareste, mas tão ligado a Portugal que defendeu uma tese de doutoramento em Arquitetura que tem Pardal Monteiro (vencedor de cinco Valmor) como figura central. Racionalismos do sul europeu. O caso de Portugal, ou Rationalisme ale sudului european. Cazul Portugaliei, no original romeno, o que mostra bem o parentesco entre as duas línguas latinas, como descobriu o tal jovem filatelista que cheguei a ser, e isto muito antes de ter visitado Brasov, Sibiu, Timisoara ou Bucareste, cidades daquela antiga Dácia que o imperador Trajano fez questão de romanizar e com efeitos visíveis até hoje, quase dois milénios passados, num país que se destaca pela pujante cultura.
Depois da nossa conversa no Cantinho Romeno, surgiu uma entrevista publicada aqui no DN em que Flămând explicava, em traços gerais, a sua proximidade com Portugal, que descobriu nos Anos 1980, graças a uma bolsa da Gulbenkian e após ter conhecido António Lobo Antunes, cujos romances depois veio a traduzir. Chegou a ser jornalista da Radio France Internationale, ao mesmo tempo que escrevia poesia e fazia traduções. Aprendeu português e, ainda na Roménia de Nicolae Ceausescu, publicou poemas de Pessoa, apesar de algumas histórias rocambolescas, como esta que recupero: “Publiquei traduções de Fernando Pessoa, mas a censura comunista, que em princípio já não existia - Ceausescu tinha decretado que a censura tinha deixado de existir - censurou até um título de Fernando Pessoa, Hora Absurda, porque o absurdo parecia demasiado ‘absurdo’ para a censura romena, assim o título passou a Hora Irreal.” Noutro momento da entrevista, Flamand falou de Eduardo Lourenço e de como, afinal, o português não é a única língua que tem a palavra “saudade”: “Em 1989, fui convidado para vir a Portugal, já começava a ser um pouco conhecido graças às minhas traduções para romeno, em concreto de escritores lusófonos, e foi nessa altura que conheci Eduardo Lourenço, que já tinha lido graças a O Labirinto da Saudade, e ele ofereceu-me um exemplar com dedicatória. Pareceu-lhe um pouco bizarro que um romeno lhe falasse de saudade, mas eu expliquei-lhe que a primeira vez que tinha mergulhado na espiritualidade portuguesa tinha sido quando tinha lido algures que a palavra saudade era intraduzível. Nós temos uma palavra similar - dor - e dizemos a mesma coisa, que ela é intraduzível, pois não significa o mesmo que dor em português. Ela é essa exceção, tal como saudade, só que nós nunca teorizámos o conceito de dor como vocês fizeram em torno do movimento de saudosismo, etc., etc., e que se tornou um critério da identidade nacional entre vós.”
Flămând tornou-se exilado político na fase final da ditadura comunista romena, regime que acabou abruptamente no Dia de Natal de 1989, quando Ceausescu e a mulher, Elena, foram fuzilados. Lisboa passou a ser como uma casa para o poeta. E Portugal começou a deixar-lhe as suas marcas, como em outros romenos, os já clássicos Mircea Eliade e Lucian Blaga, que foram cá diplomatas, mas também hoje em dia, de forma por vezes inesperada, em figuras contemporâneas que eu próprio vou descobrindo muito por mérito do ICR e da embaixada, como o romancista Radu Paraschivescu, que se inspirou em Pedro e Inês para o seu De Coração Arrancado do Peito, com tradução de Popa, e antes tinha publicado o livro bilingue Azul de Lisboa, Azur de Lisabona, ou as fadistas Ioana Dichiseanu, que me disse guardar fotos do pai com “a grande Amália”, e Cristina Dascalescu, que a 10 de abril dará um concerto na Casa-Museu Amália Rodrigues.
Estou fora de Lisboa e não vou poder reencontrar hoje Flămând. Mas finalizo de novo citando a entrevista que lhe fiz em 2021 na sede do ICR, ali perto da Sé de Lisboa, na parte em que fala do que une “latinos do Ocidente” a “latinos do Leste”: “Há uma teoria muito conhecida que fala das características da latinidade preservada unicamente nos extremos. Penso que mesmo no léxico, na sintaxe, o português e a língua romena guardaram coisas que não existem noutras línguas. Nós temos qualquer coisa de marginais que sonham sempre regressar ao centro, ao centro da latinidade.” Por isso, este poeta se sente tão bem em Portugal, como tantos romenos que entre nós vivem, estudam e trabalham, graças a uma União Europeia que reúne territórios e gentes que só tinham estado juntos nos tempos romanos.
Abençoados pacotes de selos usados, que comprava há uns 40 anos numa papelaria de Setúbal perto da Praça de Bocage, por me terem feito (querer) conhecer a Roménia e os “latinos de Leste”, como o poeta Dinu Flămând.
Diretor adjunto do Diário de Notícias