Os direitos das crianças
Nos últimos dias, tenho lido na imprensa nacional críticas violentas ao secretário-geral das Nações Unidas (NU), António Guterres, na sequência da declaração de Israel de o considerar persona non grata invocando a sua ambiguidade em relação aos ataques de 7 de outubro. As críticas nacionais (e internacionais) estenderam-se à própria organização considerada ineficaz perante a escalada de conflitos. Praticamente ao mesmo tempo, surgiu a notícia de que António Guterres pode ser nomeado para o Nobel da Paz, o que será anunciado sexta-feira. Seria um importante contributo para a esperança no multilateralismo ou, em alternativa, a nomeação de alguma das agências das NU que têm contribuído, ainda que de forma escassa, para diminuir os horrores das guerras, em especial, junto das crianças.
Sendo críticos do funcionamento das NU (incluindo o próprio secretário-geral), não podemos desistir da sua capacidade de desenhar caminhos e influenciar políticas públicas, com avanços e recuos que talvez fossem ainda mais acentuados se não houvesse uma tentativa de concertação internacional. O Pacto para o Futuro, aprovado em setembro, com as suas insuficiências, reafirma o compromisso de proteger os direitos das crianças, sublinhando o impacto devastador dos conflitos armados, incluindo o seu recrutamento como crianças-soldado, a violência sexual, o rapto, os ataques a escolas e hospitais. O lado mais negro da humanidade ou da sua ausência.
Como pensar o futuro se continuamos sem assegurar o cuidado das gerações mais novas?
Este ano comemoram-se 25 anos da Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre as “Proibição das Piores Formas do Trabalho Infantil e a Ação Imediata com vista à sua Eliminação”. É verdade que tem havido, desde então, maior consciência das cadeias globais de abastecimento, mas ainda existem 160 milhões de crianças no mundo que trabalham, 79 milhões das quais em trabalhos perigosos, como a extração do ouro, o fabrico de tijolos, o corte de cana-de-açúcar, as plantações de café e tabaco, as minas, além do trabalho infantil forçado, com destaque para as fábricas de têxteis ainda em 10 países.
Portugal fez um percurso acelerado de proteção dos direitos das crianças, mas importa não esquecer que esse caminho também é fruto da democracia e do seu amadurecimento. Alguns de nós ainda recordam as crianças-mulheres que começavam a “servir” aos 8-10 anos, muitas sem direito a salário nem poderem ir à escola, o que também explica a elevada taxa de analfabetismo feminino em 1974. Só em 1988 saiu legislação impondo coimas ao trabalho de menores que não tivessem atingido o termo da escolaridade obrigatória, que nessa altura se situava entre os 6 e os 14 anos de idade e que hoje está nos 16 anos.
Recentemente, a Associação Caminhos da Infância lançou uma campanha de sensibilização para a eliminação do trabalho infantil. Vale a pena destacar o esforço deste tipo de associações que juntam vontades e, como dizem na sua apresentação, constroem parcerias e trabalham (da investigação à prática) para que a infância seja uma experiência feliz para todas as crianças. Aqui se congregam universidades, empresas, outras associações, além da Fundação Calouste Gulbenkian e da Câmara Municipal de Lisboa. Mas há que destacar o trabalho de Inês Poeira e Francisca Carneiro que se dedicam com muito ânimo a construir os Caminhos da Infância. A OEI também e associou a esta campanha para a levar à América Latina, onde este flagelo ainda tem expressão.
Uma gota no oceano? Mas assim se enche um mar e, na verdade, cada um de nós é responsável pelos avanços e recuos globais. As Nações Unidas somos nós, sobretudo a ação em que nos empenhamos.