Os desafios da marginalidade
En realidad, los únicos a los que se les debería
permitir escribir libros de memorias
es a los aventureros sangrientos,
a las actrices de cine porno,
a los grandes detectives,
a los traficantes de drogas,
a los mendigos”.
Roberto Bolaño
Escrever memórias está, raramente, ao alcance destes sujeitos literários que Bolaño privilegia, pelo que teremos de continuar a ler as memórias aborrecidas de diplomatas conservadores, como Chateaubriand, ou, mesmo que ligeiramente romanceadas, as de um burguês rico, como Proust. Os grandes detetives têm-nos chegado por via de Simenon ou de Raymond Chandler e só os espiões (categoria que Bolaño não considera) têm uma representação digna na literatura, com Graham Greene ou John Le Carré.
A literatura e a vida têm fronteiras não-ditas, nem claras, mas sabemos desde Pessoa (ou até antes, se lermos Keats ou Emily Dickinson) que o sujeito que escreve põe, nesse mesmo movimento, uma barreira entre si e a vida (ou a “vidinha”, como diria O’Neill). Assim, é Stevenson ou até Céline que pode trazer-nos os “aventureiros sangrentos”, é Henry Miller ou Colette que nos podem levar junto ao equivalente das “estrelas de cinema pornográfico”, Gorki ou Knut Hamsun (bela reunião!) perto dos mendigos e quanto aos traficantes de droga talvez De Quincey ou Burroughs nos pudessem oferecer algumas luzes, do ponto de vista do consumidor...
A atração da literatura pelos marginais compreende-se facilmente, se pensarmos quão marginal é a atitude propriamente literária em relação à literatura de consumo que domina os mercados. Mas é raro que a escrita do próprio marginal constitua uma grande peça literária, se excetuarmos Jean Genet. Escritores que, para valorizar a sua escrita, assumem poses marginais (Bukowski, Burroughs) são um outro grupo e formam uma outra divisão.
Lowry é um grande escritor que passa pela droga como experiência de dor e não de glória. Coleridge já era um grande poeta quando escreveu, drogado pelo ópio, o seu Kublai Khan. Mas quem se lembra de Caryl Chessman ou de Albertine Sarrazin?
Há, nalguma crítica remanescente daqueles que ainda se interessam por poesia, um fascínio pela velha atitude de “épater le bourgeois”, que, sabendo que há muito o burguês recuperou para a decoração das suas casas ou das suas almas os mais terríveis desafios do modernismo, aposta então naqueles de quem ninguém fala, julgando-os os únicos isentos de compromissos com o corrupto meio literário. Ressalvando alguns casos, dificilmente vejo nos génios ignorados que esses críticos nos trazem à luz uma verdadeira capacidade de questionar a literatura, que encontro em autores que eles considerarão mainstream, mas dos quais também ninguém fala (o espaço é pouco para tantos romances americanos...).
Quem por certo foi um marginal durante toda a sua vida foi Luís de Camões. Este verão, a minha leitura de férias tem sido a biografia do poeta por Isabel Rio Novo. É uma biografia que consegue, a partir da raríssima documentação, apresentar-nos a narrativa de uma vida, sempre com o cuidado de nos avisar quando entra no terreno das conjeturas, mas baseando-se numa sólida fundamentação histórica e relendo com atenção os mais antigos biógrafos.
Mas, no tempo de Camões, ser um marginal não era nenhuma glória para um poeta e, por isso, ele de modo algum se vê satisfeito ou orgulhoso com esse seu estatuto. Porque a obra pode ser grande e imortal, e o autor ter consciência disso, mas como pode um “bicho da terra tão pequeno” reequilibrar o “desconcerto do mundo”, que premeia os medíocres e os maus e faz aos bons passar trabalhos e sofrimentos sem fim?