Os cúmplices
Independentemente do que se pense sobre o desejo e o direito da Ucrânia aderir à NATO e à União Europeia, não é possível ignorar a responsabilidade absoluta e exclusiva da Rússia na forma como tem atacado civis ucranianos. E é necessário exigir a sua condenação inequívoca, por uma questão de clareza.
Embora seja estranho não reconhecer a autonomia de países soberanos, é possível ter diferentes opiniões sobre o ocidente e a NATO (sobretudo se não for na Rússia, nem na China, onde não há assim tantas opiniões que se possam ter), mas ainda assim comungar da ideia de que até na guerra há limites. E que há uma diferença entre danos colaterais, indesejados, ou até não evitados, e o homicídio intencional e a tortura de populações civis. E não o fazer é ser cúmplice.
Comecemos pela China. As expectativas quanto ao valor que a China dá à liberdade e à autonomia dos povos são tão baixas que o facto de Pequim se abster na condenação da invasão russa é considerado positivo. Podia ser pior. E, de facto, podia. Podia assumidamente preferir a Rússia. O mesmo quanto aos crimes que são violações gritantes de direitos fundamentais. Perante a tortura e o homicídio de civis, perante a recusa de corredores humanitários, a China escolhe espalhar a propaganda russa e encolher os ombros nos palcos internacionais. Pode fazê-lo. É normal que o faça, porque os regimes autoritários pensam naturalmente assim. Mas os que compreendem ou contextualizam esta posição chinesa não são brilhantes analistas, são cúmplices desta cumplicidade. A China vê exatamente o mesmo que estamos a ver. Podemos encontrar explicações ideológicas, estratégicas ou mesmo táticas, mas ao não reagir a China está a mostrar o que pensa sobre o tema. Não surpreende, mas isso não é menos grave. Pelo contrário. Só mostra o que sabemos da China e que tantas vezes escolhemos ignorar.
O mesmo se diga de alguns comentadores, em particular um grupo de militares na reserva profissional e sem reserva moral. Depois da tentativa de culpabilizar a Ucrânia e o ocidente por provocar a Rússia (uma espécie de teoria da responsabilidade da violada por usar minissaia), há os que se têm esforçado por dizer que não houve homicídio de civis em Bucha ou que, se houve, foram os ucranianos que mataram populares pró-russos (invocando uma teoria extraordinária de que os lenços brancos são um adereço dos russófilos e não um sinal de civis desarmados, como é sabido). E que consideram viciadas todas as reportagens de jornais e televisões de países democráticos com imprensa livre que contam histórias de tortura, de gente morta indiscriminada e injustificadamente, mas que confiam na palavra da televisão russa e das autoridades de Moscovo. E que a tudo respondem com o Batalhão Azov. Isto não é espírito crítico, nem dúvida metódica, é tomar partido. Pelo lado errado. E invocar uma autoridade de especialista para fazer propaganda.
E, por último, os partidos. Os que opinam sobre tudo, que têm posição sobre todas as guerras, mas que aqui não conseguem criticar sem acrescentar um "mas" ou um "e" para juntar alguma responsabilidade ocidental ou ucraniana à crueldade contra civis, estão intencionalmente a desvalorizar o mal absoluto.
Devia ser óbvio, mas pode-se repetir: nem todos os conflitos são complexos ou com múltiplos lados. Às vezes há Bem e Mal. E dever de escolher.
PS: O que se está a passar na China, em particular em Xangai, é um mistério. O que é que motiva as autoridades chinesas a encerrarem em casa milhões e a estrangular as exportações? Preocupação com a saúde e o bem-estar da população? Pois. Então, é o quê?
Consultor em assuntos europeus