Os cowboys do espaço e a álgebra esquecida
Que os sonhadores de hoje sejam os astronautas de amanhã... Bem vindos à alvorada de uma nova Era Espacial!" cantarolou alegremente Richard Branson, uma sílaba em cada nota, depois de regressar de um voo sub-orbital de 4 minutos - e de imediato os seus óculos escuros pareceram mais patuscos, os seus chumaços nos ombros mais retro, o seu fatinho espacial mais vintage. A linguagem com que a CNN enquadrou a posterior excursão de Jeff Bezos não foi menos exorbitante. Richard Quest, o cidadão inglês cujo cargo oficial na estação é imitar um cidadão inglês, cinzelou em directo o seguinte epigrama: "Os últimos dias podem mudar não apenas a história do mundo, mas do sistema solar". Bezos, que se limitou a debitar uma procissão de "wows" e "amazings" debaixo do chapéu de cowboy, soou quase modesto na sua escolha de lugar-comum (qualquer coisa inócua sobre "construir o futuro").
O espectáculo pode ser novo num aspecto - uma forma inovadora para multi-milionários escoarem os seus excedentes, a juntar à compra de clubes de futebol, ou aos totolotos concedidos a descendentes de pintores mortos - mas as estrofes também denunciam um exercício de retromania, o equivalente à cultura de remakes e sequelas que marca o entretenimento actual: mais do mesmo, mas mais tarde, e mais pequeno.
O programa espacial foi, desde o início, uma empreitada de grandiloquência, tanto como de engenharia e engenho. O projecto de explorar os astros envolveu a mobilização de recursos sem precedentes em tempo de paz, mas muitos dos lucros intangíveis eram imediatamente reinvestidos em retórica estratosférica; Nixon recebeu os astronautas da Apollo 11 garantindo que aquela tinha sido "a semana mais importante desde a Criação do Universo". Se na altura a hipérbole não era tão consensualmente dissonante, era porque o programa Apollo cumpriu uma sequência contínua de futuros imaginados pela ficção científica, e também porque prometia ser um patamar, ao invés do que realmente foi: um pico. Quando, cinco meses depois, Nixon recebeu Charles Conrad e Alan Bean, uma das coisas que não lhes disse foi que aquela era a segunda semana mais importante desde a Criação do Universo.
O Apollo 12, na verdade, marcou o princípio do súbito e irrevogável desinteresse público na exploração espacial, que em década e meia passou de promover os astronautas do programa Mercury a celebridades globais - à escala de presidentes, atletas ou estrelas rock - para ignorar olimpicamente as últimas missões à Lua. Um dos escritores do séc. XX que mais vezes comentou este curioso fenómeno foi J. G. Ballard, em parte porque o parece ter antecipado na sua ficção. Num conto de 1968 intitulado The Dead Astronaut, imaginou um futuro não muito distante no qual toda a indústria espacial já é uma ruína semi-esquecida: "O Cabo Kennedy desapareceu, as suas plataformas de lançamento erguem-se agora das dunas desertas... A areia atravessou o rio, enchendo os ribeiros e transformando o antigo complexo espacial num deserto de pântanos e cimento rachado... Para lá de Cocoa Beach, os motéis em ruínas estavam meio escondidos no meio das junças. As torres erguiam-se no ar nocturno como cifras enferrujadas de uma álgebra celeste esquecida...".
A retórica que embrulhou os passeios de Branson e Bezos parece querer recuperar a memória emocional dessa álgebra esquecida, mas o que a torna penosa é precisamente a disparidade entre o processamento cultural da mitificação original e a banalidade repetitiva do que agora é proposto como um capítulo seguinte. Qualquer visão do futuro está condenada a chegar ao futuro como kitsch: galvaniza a imaginação apenas quando ainda não existe; no ponto em que se torna obsoleta, as únicas respostas emocionais disponíveis são o ridículo ou o afecto nostálgico - razão pela qual a melhor ficção científica não costuma ser a que prevê o futuro mais correcto, mas a que consegue intuir acidentalmente o passado menos embaraçoso. A recuperação de dialectos promocionais gastos - "uma NOVA ERA ESPACIAL" - mostra que o custo da falta de imaginação é a hipótese de dinamismo: tudo o resto, incluindo a retórica, é obrigado a permanecer imóvel, ou qualquer auto-ilusão é fatalmente quebrada.
A disparidade reforça também a sensação ambiente de sermos reféns de uma cultura exausta - prisioneiros das fixações de uma geração anterior, e dos caprichos nostálgicos de quem as tenta recapturar. A sensação talvez seja mais familiar para quem passa grande parte do tempo online e repara na frequência com que debates do mesmo período histórico se organizam espontaneamente para reproduzir a mesma carga afectiva do período, por exemplo, da Guerra Fria - agora convertida para a língua franca do debate "político" na internet, que se reduz à capacidade para mimetizar a opinião correcta sobre um assunto, e ridicularizar que não a tem. "Cuba", "a exploração espacial", "a liberdade de expressão": todos foram instrumentos metonímicos na disputa entre duas super-potências para aferir quem tinha o pénis maior; todos passaram a acessórios para a construção da auto-imagem política de adolescentes na internet, condenados a reciclar os mesmos debates (pela mesma ordem, com o mesmo conteúdo) de antepassados septuagenários.
Ballard também passou o resto da carreira a revisitar os destroços do Cabo Kennedy. Um dos cenários centrais da ficção científica - a migração interplanetária - é tradicionalmente lido como uma iteração do culto da Fronteira, funcionando como caução para a derradeira fantasia correctiva: a diáspora cósmica enquanto sonho de obliterar a engalfinhada complexidade do que já existe, e recomeçar de novo, do zero, num sítio sem memória ou herança. Num par de contos dos anos 80, News from the Sun e Memories of the Space Age, Ballard vira essa tradição do avesso, descrevendo as antigas paisagens da era espacial povoadas por bandos dispersos de vagabundos narcolépticos e pré-amnésicos, sobreviventes de uma pandemia provocada indirectamente pelo programa Apollo, visto como uma "transgressão evolutiva" pela qual haverá um preço a pagar. A doença, uma "praga temporal" rouba, primeiros aos astronautas e depois a toda a humanidade, a capacidade de discernir o tempo subjectivo. O futuro desaparece gradualmente, engolido pelo passado. Os últimos humanos ficam quietos no mesmo sítio, num presente infinito e imutável, entre as ruínas dos últimos mitos eficazes: os foguetões da sua infância.
Escreve de acordo com a antiga ortografia