Os católicos que paguem a crise
Confesso alguma inexperiência em matéria de eventos. Ou seja, dito de outra forma, comparando, tenho bastante mais experiência de ser contribuinte fiscal do que organizador ou até frequentador de grandes eventos de massas. Admito que estar numa massa de pessoas, milhares e milhares à nossa volta, a olhar para um homem, possa ser uma experiência transcendental. Que cause desmaios e transes místicos. Que seja do âmbito do sobrenatural. E que isso justifique a criação de condições absolutamente excecionais para a visita de um chefe de Estado estrangeiro e também chefe religioso. Mas, não sei porquê, custa-me a compreender como pode o presidente da Câmara Municipal de Lisboa apresentar como grande conquista sua a redução do preço de um palco, de 18 milhões de euros para mais de 4 milhões. E, claro, obra sem concorrência ou alternativa, já que adjudicada por ajuste direto, que o Papa também é só um e a Santa Igreja Romana Católica Apostólica uma, una que é, como a infalível Mota-Engil seguramente.
É certo que estamos a falar de um altar-palco. Na sua genética de conceito, portanto, uma forma extrema de alteridade perante os demais, um outro palco, distinto do palco comum da vida dos pobres mortais ou, pior, até dos ateus ou agnósticos ou de outras fés. E Portugal, que deve a sua existência a diversos Papas, seja no mito fundacional, seja na legitimidade e atribuição dos deveres da evangelização transatlântica e dos cafres, tem de pensar nisso a sério e respeitar essa herança.
Eu, católico, me confesso: ao recebermos o Santo Padre, que seja com o nosso melhor vinho. O que são hoje quatro milhões de euros para um palco comparando com toda a riqueza do ouro do Brasil ou das especiarias da Índia, nem falando já da imensa força de trabalho escrava? Querem discutir o nosso PIB secular, histórico, ao lado desta minudência de investimento, desta roulotezinha plantada ao lado do rio Trancão, rio que elucidativamente nasce na Póvoa da Galega e não na Praça de São Pedro ou no Santo Sepulcro, denotando assim logo a sua pequenez terrena que urge benzer e sublimar? Ou quereriam reativar o velho Terreiro das Missas de Belém, essa herança do Estado Novo, que só as ervas daninhas (danadas?) aproveitam hoje?
A legitimação máxima nem é dada pela presença do Santo Padre. A legitimação do investimento é, como é sempre nestes temas, o credo da reutilização. Poderemos depois da visita do Papa reutilizar o palco - como se a boa alternativa fosse recuperar essa massa de gente, mas agora dotada de picaretas e cinzéis, e repor, em terapia de grupo, a normalidade marginal do Tejo. A reutilização. Sim, que se pode sempre, talvez com uma pequena ajuda do Cristiano Ronaldo, trazer de Meca mais umas centenas de milhar ou mesmo milhões de peregrinos, para adorar Alá, ali mesmo, nos campos de São João da Talha, uma nova Meca. Ou apostar mesmo noutras fés. Porque não uma revigoração assertiva da Bobadela, tornada uma nova Varanasi, e o Tejo um outro Ganges, só que em bom?
Ah, Portugal, Portugal... Que nos valha o beato Marcelo e o primaz António dos Santos, que de resto, com céticos como eu, nem saberíamos o que fazer ao dinheiro.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa