Os “camarates” brasileiros

Publicado a

Portugal tem Camarate, ponto de partida para dezenas de livros e milhares de teorias da conspiração.

Agora imagine viver no Brasil, país onde o primeiro presidente na ditadura militar, Humberto Castelo Branco, morreu num mal explicado acidente aéreo após colisão contra outra aeronave, em 1967, meses depois de abandonar o poder.

E onde o pai da democracia brasileira, Ulysses Guimarães, faleceu em alegado desastre de helicóptero, em 1992, sendo que o corpo de todas as vítimas do acidente foi encontrado ao largo de Angra dos Reis menos o dele.

O país onde um candidato à presidência em 2014, Eduardo Campos, foi vítima de um erro incomum de pilotagem na queda de um jato em Santos, a meses do sufrágio.

E onde o juiz do Supremo com o dossiê da Lava Jato em mãos, Teori Zavascki, morreu em 2017, no auge da operação, após queda, em Paraty, do bimotor onde seguia.

É muita morte suspeita pelos ares para um país só, sobretudo por comparação com quem só tem 4 de dezembro de 1980 para fabular.

Porém, à luz fria das estatísticas, nem tanto: desde que em 2014 o Sistema de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos contabiliza desastres aéreos há uma média de 160 acidentes por ano no Brasil.

Em 2024, por exemplo, foram 169, entre os quais aquele fora da curva do avião que caiu na cidade de Vinhedo, em agosto, e matou todas as 62 pessoas a bordo.

E enquanto o mundo se chocava com o terrível desastre no pouso de um avião na Coreia do Sul, o Brasil chorava, na véspera, o desaparecimento de duas pessoas a bordo de uma aeronave em Manicoré, na Floresta Amazónica, e, seis dias antes, a morte de 10 cidadãos em Gramado numa queda de avião de pequeno porte.

Porque o Brasil, reforçando a luz fria das estatísticas, é o segundo país, só atrás dos EUA e à frente do México, do Canadá e da Alemanha, com mais aeronaves privadas.

Ora, com tantas aeronaves privadas, é natural que mais acidentes e mortes ocorram. Com tantos acidentes e mortes a ocorrerem, é natural que entre elas se conte a de alguns protagonistas políticos, por norma clientes habituais desse tipo de voos. Logo, não há razão para as teorias da conspiração prosperarem.

Não há? Talvez não haja no ar porque se descermos à terra temos o suicídio cinematográfico do presidente Getúlio Vargas após um Conselho de Ministros em 1954 e o choque de automóvel mal explicado que vitimou o ex-presidente Juscelino Kubitschek em 1976.

Tancredo Neves, por sua vez, faleceu de doença no intervalo entre a sua eleição como presidente e a tomada de posse em 1985.

E já neste século um promissor autarca, Celso Daniel, foi sequestrado e morto num caso em que sete das testemunhas acabaram executadas, enquanto muito boa gente ainda desconfia de encenação na facada sofrida por Bolsonaro. 

Diário de Notícias
www.dn.pt