Os BRICS ainda têm pés de barro
A cimeira de há dias dos BRICS no Rio de Janeiro veio reforçar o que há muito penso: as relações internacionais andam à busca de novos equilíbrios. Poder-se-ia dizer que estamos numa segunda fase do processo de emancipação das antigas colónias dos países europeus e dos EUA. A independência da Índia, em 1947, foi um momento marcante na história das libertações nacionais. Esta primeira fase, que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, transformou as Nações Unidas. No momento da sua fundação, assinaram a Carta 51 Estados. Em 1975, a organização já tinha 144 membros. A mais recente admissão ocorreu em 2011, com a entrada do Sudão do Sul. É igualmente a partir do início dessa década que se acelera o processo de desconexão entre os países mais desenvolvidos e as antigas colónias. É a esse processo que chamo a segunda descolonização.
Ficou então claro algo que já estava em debate desde o fim da Guerra Fria: que a vertente política da ONU, sobretudo a desempenhada pelo Conselho de Segurança, deixara de ser representativa da realidade internacional. Em segundo lugar, tornara-se evidente que poderia ser construída uma alternativa à arquitetura política das Nações Unidas. A China de Xi Jinping, que chegou ao poder em 2012, apareceu como o eixo em torno do qual seria possível construir uma nova teia de relações internacionais.
Xi compreendeu essa possibilidade, que tinha três vantagens importantes para a consolidação do seu poder pessoal. Transformava a China numa potência central na arena mundial. Facilitava-lhe o acesso político e económico a um grande número de países. E criava condições para assegurar a prosperidade e acarinhar o nacionalismo histórico do cerne da população chinesa. Assim, Xi lançou desde logo, em 2013, uma vez consolidada a sua autoridade interna, algo que qualquer político sabe ser a prioridade absoluta, o projeto gigantesco da Nova Rota da Seda. O nome em inglês - The Belt and Road Initiative - permite entender melhor a intenção de Xi: construir toda uma logística de infraestruturas que lhe permitissem chegar rapidamente aos mais diversos mercados mundiais. E que também possibilitassem a mobilidade de tudo o que estivesse relacionado com os seus interesses militares. Hoje existem cerca de 150 países e várias organizações internacionais que têm um qualquer tipo de acordo com a China relacionado com o funcionamento e a expansão da Nova Rota da Seda.
Faltava, porém, a dimensão política, um sistema que oferecesse uma opção diferente à hegemonia dos EUA e dos países mais desenvolvidos. É essa a razão que levou Xi a investir no aprofundamento dos BRICS. O grupo havia surgido na primeira década do século, fundamentalmente por iniciativa russa, como um contraponto ao G7. As primeiras cimeiras, que reuniram o Brasil, a Rússia, a Índia e a China, não permitiram grandes avanços nas áreas consideradas fundamentais: a cooperação económica entre esses quatro países, a capacidade de influenciar as organizações financeiras internacionais e o abandono progressivo do dólar americano no comércio entre eles.
A África do Sul juntou-se aos outros quatro em 2010. Mas o verdadeiro arranque dos BRICS deveu-se a Xi, a partir da cimeira de 2013. A China percebeu então a importância política do agrupamento e passou a dar uma atenção especial ao seu desenvolvimento. Os BRICS ofereciam a dimensão multilateral e a cobertura política que faltava à Rota da Seda. Mais ainda, Xi via na expansão dos BRICS o fim das instituições dominadas pelos ocidentais e a criação de um novo tipo de relações, exterior ao sistema da ONU, do G7 e do G20. Esse sistema refletiria o xadrez global atual. Teria como pontos centrais a cooperação digital, os mares profundos, o desenvolvimento das trocas comerciais, a promoção das mulheres na área dos negócios, a moeda das novas economias, a exploração do espaço e mais. Procuraria igualmente entrar no domínio da resolução de conflitos, mas faltou-lhes o ingrediente principal: a imparcialidade.
Isso ficou claro na cimeira do Rio de Janeiro, que de resto foi um meio fiasco. Os líderes foram incapazes de tratar da questão da Ucrânia de modo objetivo, só para mencionar o exemplo mais evidente. Ou seja, caíram na mesma ratoeira que tem aprisionado o Conselho de Segurança da ONU. Não tiveram a coragem de reconhecer as violações praticadas por um dos seus membros-chave, a Federação Russa. Isso leva a descrédito da organização. Como também ficou claro que, para além das intenções da China, os principais membros têm agendas muito diferentes e rivais. A Índia e o Brasil vêem a sua participação como uma moeda de troca para poderem entrar, tão rapidamente quanto possível, como Estados permanentes no Conselho de Segurança. A China vetará certamente a admissão do Brasil, ou da Indonésia, para não ser forçada a abrir a porta à Índia. A competição entre estes dois colossos, para mais vizinhos, fará parte da paisagem geopolítica futura, em conjunto com os EUA.
Na verdade, os BRICS são uma aliança de conveniência, deveras frágil. Um acordo positivo enquanto contribuir para o equilíbrio das relações internacionais. Poder-se-á tornar problemático, porém, em virtude das rivalidades que existem entre alguns. Também, por se tratar de uma associação em que imperam Estados com muito pouco ou nenhum respeito nem pelos direitos humanos dos seus cidadãos, nem pela lei internacional.
Conselheiro em segurança internacional.
Ex-secretário-geral-adjunto da ONU