Os 75 anos das Convenções de Genebra
Comemoram-se, a 12 de agosto próximo, os 75 anos da assinatura das quatro Convenções de Genebra, que consolidaram o pilar fundamental do Direito Internacional Humanitário (DIH) na condução das operações militares, em tempo de Guerra ou Conflito. Estas Convenções de Genebra, que foram revistas e alargadas em 1949, estabelecem regras para proteger os seguintes grupos de pessoas, mais vulneráveis, dos efeitos das hostilidades: Primeira Convenção - doentes e feridos no campo de batalha; Segunda Convenção - feridos, doentes e náufragos no mar; Terceira Convenção - prisioneiros de guerra; e a Quarta Convenção - proteção de civis em tempo de guerra.
Tendo alcançado a aprovação praticamente universal, as quatro Convenções de Genebra de 1949 são os tratados internacionais mais amplamente aceites. Isto não quer dizer que todos as pratiquem, ou que não precisassem de ser, eventualmente, atualizadas, tendo em consideração a evolução havida nos conflitos, sejam eles entre Estados, sejam em guerras ditas civis. Em 1977 foram criados 2 Protocolos Adicionais às convenções que detalharam os regimes de proteção em conflitos internacionais e não-internacionais.
O Direito Internacional, relativamente aos conflitos armados, tem, genericamente, dois grandes pilares: o Direito Internacional Humanitário, chamado também Direito de Genebra, visto estar muito centrado nestas Convenções e tratando da proteção de pessoas ( e bens) e o Direito da Guerra, ou Direito de Haia, que estabelece as regras e condições para ser declarada a guerra e como deve ser conduzida. Este último, muito dele aprovado a seguir à 1ª Grande Guerra, foi complementado pelo preceituado na Carta das Nações Unidas, relativamente a estas matérias.
A Ordem Internacional (OI), criada após o fim da Segunda Grande Guerra e consolidada no período da Guerra Fria, estabeleceu, sobre o ponto de vista do Direito Internacional, um conjunto de regras e normas, vertidas numa série alargada de tratados e outros documentos, muitas delas sob o chapéu da Organização das Nações Unidas.
De referir que o Movimento da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, que agrega as suas Sociedades Nacionais, a Federação Internacional e o Comité Internacional da Cruz Vermelha, foram dinamizadores de muitos destes documentos sobre o pilar humanitário, e têm-se constituído como guardiães e observadores da aplicação destas regras nos conflitos.
Sabemos que a aplicabilidade destas regras humanitárias na conduta dos conflitos, pelos diversos atores envolvidos, nunca foi perfeita, muito pelo contrário. Mas tem havido uma preocupação de, pelo menos, não se violarem estas regras humanitárias, até pelo facto de que a crítica da sociedade internacional e, no limite, a aplicação de sanções pelos tribunais internacionais, serem mecanismos constrangedores das violações declaradas ou constatadas.
No entanto, em especial o conflito da Ucrânia, mas também o do Médio Oriente, têm-nos mostrado que cada vez se viola mais o DIH e também o Direito da Guerra, sem grandes preocupações de possíveis sanções, em especial por parte dos responsáveis políticos, mas também militares.
Em especial o conflito da Ucrânia mostra-nos um movimento em curso, de algumas potências autocráticas, de alterarem esta OI baseada em regras, de que o DIH é parte importante, para uma nova ordem, onde as regras não contam e o uso da força será o instrumento fundamental.
A esta ameaça, juntam-se os riscos que as novas tecnologias utilizadas nas guerras tem trazido, nomeadamente a Inteligência Artificial, que retira o escrutínio humano de alguns processos de decisão e ação, nomeadamente a escolha de alvos militares e dos meios de ataque, e onde se tem notado que estas metodologias e processos tem incrementado exponencialmente as baixas civis, colocando em causa aquilo que é o objeto da 4ª Convenção e dos protocolos adicionais, sobre a proteção de civis em zonas de conflito.
Estas datas redondas não deverão ser só comemorativas, mas, também, ocasiões de reflexão sobre os desafios que se colocam, sendo que quando falamos de guerras e conflitos estamos a falar dos fenómenos sociais e políticos mais complexos, com sérios impactos sobre a vida das pessoas, sejam eles combatentes ou não-combatentes. A guerra é, cada vez mais, um fenómeno multidimensional, pois deixou de acontecer exclusivamente entre forças militares e saltou para os ambientes urbanos, onde vivem os cidadãos não-combatentes. Isto requer exigente formação e treino dos profissionais da ação militar para, dentro do quadro previsto nas convenções, executarem os planeamentos e operações em sintonia com os princípios básicos do DIH, assim como para os agentes políticos que decidem e monitorizam o desenrolar das operações militares.
As questões das novas tecnologias aplicadas aos instrumentos militares, nomeadamente a IA, os sistemas não-tripulados autónomos, a bioengenharia, a computação quântica que, entre outras, trazem desafios de natureza ética e operacional e que terão de ser integrados no DIH, sob o risco de, se não o forem, poderem dar azo a catástrofes humanitárias, que muito provavelmente ficarão sem responsáveis diretos identificáveis.
No quadro dum programa de comemorações internacional, a Cruz Vermelha Portuguesa, em conjugação com a Embaixada da Suíça em Lisboa e o Ministério dos Negócios Estrangeiros, estão a programar um conjunto de atividades, que envolvam os principais atores dos conflitos, políticos, militares e agências humanitárias, assim como a Academia, no sentido de se fazer esta necessária reflexão sobre os novos ambientes do conflito e o DIH. Mais que uma comemoração, que é relevante, é uma reflexão sobre este mundo polarizado e de conflitos em curso, que não pode deixar para trás as regras básicas da proteção das pessoas, dos bens e das sociedades.