Os 12 trabalhos hercúleos na Saúde

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A mudança de ciclo na Saúde representa uma oportunidade para um inadiável impulso na transformação do Sistema de Saúde português e para o relançamento das políticas públicas no setor, com particular impacto na transformação do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Perante problemas tão complexos e desafios de tamanha dimensão poderemos dizer que o novo ministro e a sua equipa têm pela frente uma tarefa hercúlea de cujo sucesso dependerá o bem-estar e a proteção da saúde dos portugueses, nos próximos anos. Em termos globais poderemos sintetizar o alcance do desafio em "12 grandes trabalhos":

O setor precisa de se reconhecer num projeto racional e explícito onde esteja claramente definida uma visão de médio e longo prazo. Mais do que o sistema ou o serviço importará considerar nesta visão o setor da saúde no seu conjunto. Tendo bem presente que não será possível estabilizar modelos de financiamento, organização e de prestação de cuidados sem considerar as múltiplas envolventes do setor, desde a transição demográfica, à conjuntura económica, passando pela inovação e a gestão de recursos, sem esquecer o papel essencial das determinantes sociais da saúde. O papel da política da Saúde deverá estar centrado na capacidade de leitura alargada do contexto e dos problemas, na capacidade de compreender o todo para poder conjugar as partes.

A partir de um rumo estratégico estabilizado será possível aprofundar um modelo de governação consistente e duradouro. Sem uma governação estável, baseada em critérios técnicos e científicos, não haverá resultados. Nesta perspetiva, é necessário trabalhar a partir da evidência disponível, generalizando as boas práticas já existentes. A governação do Sistema de Saúde tem de recentrar o papel da promoção da saúde e da prevenção da doença no epicentro das políticas públicas, dotando-as dos indispensáveis instrumentos e recursos. Ainda neste capítulo será fundamental reconhecer o papel central da Saúde Pública na implementação da saúde em todas as políticas. De igual modo, a boa governação da Saúde terá de focar os objetivos na realização de uma saúde mais próxima e participada, com o envolvimento ativo dos cidadãos, do poder local e associativo.

O Setor da Saúde, nas suas diferentes dimensões, é um dos maiores empregadores do país. Nele se concentra grande parte do emprego qualificado do país. Mais de 240 mil pessoas trabalham no setor, desde a prestação direta de cuidados, até às atividades de ensino, investigação e desenvolvimento, e aos serviços. Trata-se de um setor em que os profissionais valorizam a condição humana, contribuindo, ao mesmo tempo, para a criação de valor na economia. A melhoria do Sistema de Saúde requer uma urgente intervenção nas diferentes profissões ligadas à prestação de cuidados. Para além das questões remuneratórias, está o projeto de desenvolvimento pessoal e profissional e da resposta à ambição legítima de progresso e de motivação. A mudança do conjunto do sistema terá de ser feita em cooperação com os profissionais porque, sem o seu envolvimento, as políticas nunca terão sucesso.

É fundamental reconhecer que Portugal está confrontado com um grave problema de restrição de acesso, cujas consequências serão muito graves se nada for feito. A pandemia agravou as condições de acesso e comprometeu a agilidade e a prontidão das respostas. Nesta matéria os números oficiais colocam Portugal numa situação muito negativa. Há que estabelecer um plano de curto prazo, mobilizando todos os recursos disponíveis, para recuperar o tempo perdido e evitar o agravamento da situação clínica de milhões de pessoas. Sem prejuízo deste plano de curto prazo, é fundamental introduzir medidas que respeitem, de forma continuada, o imperativo constitucional - acesso a cuidados de saúde, de qualidade e em tempo oportuno, a todos os cidadãos. O cidadão não pode ser prejudicado pelas ineficiências do sistema. Os tempos máximos de resposta garantida devem ser respeitados, independentemente do local onde venham a ser prestados. Trata-se de fazer cumprir o contrato social implicitamente estabelecido com os cidadãos. Para além da melhoria das respostas já existentes, importará agilizar o plano de reforma da saúde mental e equacionar a criação da Rede Nacional de Cuidados de Saúde Oral ancorada na rede pública e na generalização de uma rede convencionada com contratualização de cuidados à generalidade dos cidadãos, com particular enfoque nas crianças e jovens, nos idosos e nos grupos mais vulneráveis.

A complexidade do Setor da Saúde é incompatível com bloqueios ou restrições. O aumento das necessidades em saúde, a par de um crescimento constante dos recursos necessários e da intensa pressão resultante da inovação terapêutica e tecnológica, requer colaboração e cooperação inteligente e estratégica tendo presente o interesse comum. As relações de parceria entre setores - público, privado e social e entre stakeholders são incontornáveis, devendo, por isso, ser construídas numa perspetiva de criação de valor e de geração de eficiência. As farmácias comunitárias deverão ver reforçado o seu papel de agentes de mediação e de prestação de cuidados no quadro global do Sistema de Saúde.

A organização do sistema público, em geral, e do SNS em particular, deve basear-se numa ideia global de simplificação administrativa, de redução da carga burocrática libertando os serviços e os profissionais para a ação direta junto das pessoas. A tentação histórica de camadas de decisão e de participação nos processos deve ser contrariada através da descomplicação legal e regulamentar. As redes de referenciação tal como as redes de urgência deverão ser corajosamente ajustadas, conciliando proximidade com segurança clínica e efetividade das respostas.

Sem prejuízo da regulamentação associada ao novo Estatuto do SNS, deverá ser aprofundado o caminho de autonomia dos hospitais, a dinamização de experiências de gestão inovadoras, bem como a reavaliação das experiências de gestão partilhada (PPP). As equipas de gestão não deverão depender de nomeação política, devendo ser exigíveis qualificações específicas e experiência profissional adequada para o exercício de funções. A implementação em tempo adequado do Planos de Atividade e Orçamento deverão ser o instrumento-base de relação de confiança e de autonomia relativa entre Saúde e Finanças. Nos CSP será indispensável a adaptação das respostas às necessidades da população tornando-os mais acessíveis e resolutivos. Nos hospitais, deverá ser rapidamente generalizada a instalação de CRI, Centros de Responsabilidade Integrada, de que são exemplos os casos de sucesso de Obesidade no CHU S. João e de Ortopedia e Traumatologia no CHU Lisboa Central. O programa de Hospitalização Domiciliária, lançado em 2018, deverá consolidar o seu desenvolvimento.

O financiamento público não pode prosseguir uma trajetória de crescimento desligada de resultados. O que aconteceu nos últimos anos foi que a captura de valor resultante do impressionante reforço feito no programa de saúde foi, em grande medida, capturado pelos fornecedores e muito pouco pelo trabalho gerando um preocupante nível de desequilíbrio e de grande ineficiência. O financiamento público tem de ser inteligente, comprometido com resultados e incorporando na contratualização a responsabilização objetiva dos agentes.

A renovação em curso do parque hospitalar e da rede de cuidados de saúde primários não dispensa um programa específico de investimento em equipamentos e em tecnologias, seja por via direta, seja através de parceria com outras entidades. Para além da modernização de infraestruturas e de equipamentos, será necessário o estímulo à modernização de processos. A modernização do SNS deverá ter como propósito a criação de Centros de Referência, nos quais se concentrem as melhores práticas e os melhores profissionais.

O sucesso alcançado com a desmaterialização das receitas médicas, o e-vacinas e outras aplicações de interface com o cidadão deve ser um incentivo à rápida desmaterialização dos exames de diagnóstico e a consequente consolidação do Registo de Saúde Eletrónico propriedade do cidadão e de partilha entre os diferentes setores e profissionais de saúde de modo a facilitar a portabilidade dos dados e a reduzir as duplicações e ineficiência. O SNS24 deverá assegurar o progressivo acesso a telecuidados e ao agendamento eletrónico de serviços e contactos por parte dos cidadãos.

O Sistema de Saúde deve aprofundar a relação com as instituições do Ensino Superior, de investigação e de desenvolvimento tecnológico, quer sob a forma de densificação dos Centro Académicos Clínicos, quer através de parcerias com parceiros, entidades e empresas ligadas à inovação. O SNS terá de aprofundar a cultura científica e a prática da investigação, através da introdução dos incentivos adequados aos serviços e aos profissionais.

Finalmente, o mais desafiante dos trabalhos - a sustentabilidade e o desenvolvimento garantindo que as escolhas feitas não comprometem o médio prazo e os direitos das gerações vindouras. Na prática, afrontando, com coragem, o dilema da escassez de recursos, da enormidade das necessidades, do respeito pela equidade e o imperativo ético da redução das desigualdades. Neste capítulo é fundamental maturidade na decisão, rejeição do facilitismo, coragem para enfrentar as críticas, tendo presente que as escolhas do presente implicam, sempre, consequências no futuro.

Médico e ex-ministro da Saúde

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