Continuo a achar que perdemos tempo no acessório e não nos focamos no essencial..Há pouco mais de um ano escrevia sobre a proposta de lei para as ordens profissionais, que viram os seus estatutos alterados, a soldo de exigências da Autoridade da Concorrência e da libertação de mais uma tranche do Plano de Recuperação e Resiliência, de modo a cumprir a chamada "Reforma RE-r16", integrada na Componente 6 do PRR (Qualificações e Competências). Passando por cima do nível de mendicidade que o país mantém, expressei à época preocupação e renitência acerca dos benefícios do conjunto de alterações, considerando que criaria mais entropia no normal funcionamento das Ordens Profissionais. Infelizmente o tempo não alterou esta convicção, aprofundou-a e, sem modéstia, veio dar-me razão..Um dos grandes entraves está na obrigatoriedade da remuneração, e respetivo valor, dos estágios profissionais de acesso às Ordens. Obviamente que o estágio deve ser remunerado e tem utilidade..Então qual é o problema?.Não podemos criar leis onde não se preveja a sua concretização e operacionalização..A lei estipula o pagamento do ordenado mínimo, majorado em 25%, que se materializa em 1025€ no continente ou 1062€, no caso da Madeira - a realidade que enfrento no quotidiano..É muito?.Não é..Então qual é a dificuldade?.O governo não acautelou o provimento deste valor, colocando centenas de jovens recém-licenciados num beco sem saída, porque não conseguem garantir o estágio profissional..Nesta altura do ano, em que se estão a licenciar/mestrar milhares de jovens, conjuga-se uma espécie de tempestade perfeita para fazer explodir uma bomba que rebentará nas mãos das entidades responsáveis. Ordens Profissionais, primeiro, e governo, fatalmente, pois cabe a este ter a coragem de tomar decisões que mitiguem, ou resolvam, este problema, que promete meter em pausa prolongada a vida da geração que está a sair das universidades..Senão vejamos:.As entidades recetoras ou não têm orçamento previsto para o fazer ou não têm capacidade financeira para cumprirem com o pagamento dos Estágios..É morrer na praia..Sem este passo os jovens não conseguem exercer a profissão para qual muitos fizeram com grande esforço financeiro e familiar..É incompreensível a falta de planeamento que medrou na conceção dum diploma feito á pressa, com pouca ou nenhuma capacidade de ouvir, e com o Presidente da República a ajudar á festa, instando o então primeiro-ministro António Costa a despachar-se, com o risco do “dinheirinho” do PRR não chegar..Sim, é preciso ser justa e sublinhar que este imbróglio não foi criado pelo atual governo, mas sim pelo precedente, com a total complacência da anterior direção da Ordem dos Nutricionistas, da qual sou hoje membro do Conselho geral e que represento na Madeira..Os obstáculos estavam à vista, mas não houve capacidade de solucionar..O governo sempre pareceu mais preocupado em dar resposta às diretivas da União Europeia, por um lado, encontrando igualmente uma oportunidade para introduzir elementos alheios às próprias ordens , por outro, com o argumento de melhor regulação das mesmas..Concordando ou não, a questão é que o executivo tinha responsabilidade de garantir a operacionalização da lei, e não o fez, assobiando para o lado. Nem teve capacidade de garantir em sede de orçamento..Um orçamento que, recordo, foi elevado a instrumento essencial para a sobrevivência nacional, tendo justificado um adiamento do calendário eleitoral, de modo a viabilizá-lo. Este elemento, fundamental para o futuro imediato, não foi contemplado..Por outro lado, a minha ordem, que já vinha a debater-se com constrangimentos vários, nomeadamente neste âmbito, não zelou pela defesa dos nutricionistas..Era detentora de um conjunto de informações que já evidenciavam dificuldades, e que foram totalmente ignoradas..Em 2022, só 26,6% dos nutricionistas estagiários eram remunerados e, desses, 81% eram remunerados abaixo do preconizado no estatuto..Mais! Em 2019, o 2º Estudo do Percurso Socioprofissional dos Membros da Ordem dos Nutricionistas, constata que mais de 60% dos colegas com menos de dois anos de exercício da profissão, tinham uma remuneração mensal abaixo dos 800€. Significando que, no momento atual, os colegas que conseguem arranjar um local de estágio cumprindo a lei, auferem um rendimento superior a muitos colegas que já se encontram inseridos no mercado de trabalho. Não é justo, obviamente, colocando a descoberto as iniquidades no sistema..Agora pergunto: como é possível colegas afetos à anterior direção pedirem justificações para os constrangimentos atuais, impurezas essas que já estavam sinalizadas sem que nada tivessem feito para o evitar? Não sou favorável á lei da rolha, mas moral e eticamente é, pelo menos, questionável..Não é possível exigir o inatingível. Impõem respostas em 9 meses de exercício, da atual bastonária, e em 5 meses, desde que entrou em vigor a lei da alteração aos estatutos, quando nos 10 anos anteriores andavam distraídos..Mas, tal como acontece com a governação nacional, há um tempo limitado para invocar a “pesada herança”. Sabendo que o problema não foi criado por Montenegro, Leitão Amaro e seus pares, cabe-lhes resolvê-lo. Com coragem e decisão..Não podemos içar bandeiras da importância de reter os jovens no país, apresentar medidas de criação e acesso ao 1º emprego, de melhores condições de trabalho, e não ser essa a realidade que se vive..É preciso encontrar uma solução urgente. Os jovens estão emparedados entre a licenciatura e a entrada na profissão..A Bastonária da Ordem dos Nutricionistas, Dra. Liliana Sousa, recentemente emitiu um comunicado alertando para a necessidade de respostas para a resolução do problema que arde em lume brando, manifestando estar ciente das dificuldades que os jovens se debatem e expressando a total solidariedade com os mesmos...Tendo em conta o enquadramento legal, que obriga a adaptação dos estatutos até 1 de março de 2025, o espaço temporal é exíguo e as ordens profissionais não têm capacidade de resolução em tão curto espaço de tempo, sem o auxílio do governo..Até porque muitos destes estágios, e competências profissionais, nomeadamente no sector da saúde, estão vocacionados para entidades públicas. Se o próprio Estado não consegue resolver a forma como paga aos seus estagiários em processo de inserção nas respetivas Ordens, como pode pedir aos privados que o façam?.O que está em causa?.A garantia remuneratória do estágio..Até fevereiro de 2024, alguns estágios eram garantidos pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), e entidades correspondentes nas Regiões Autónomas ( IEM – Madeira, DRQPE – Açores). Atualmente esse caminho não é possível, pelo menos nos mesmos pressupostos, porque a remuneração é inferior ao valor definido por lei nos estatutos..Na minha opinião, poderão existir vários caminhos..Um, seria o ajuste do vencimento do IEFP de acordo com a lei dos estatutos. Sabendo que a remuneração está associada ao valor do indexante de apoios sociais – IAS, bastava aumentar em mais um IAS, estabelecendo um regulamento próprio para o acesso a estágios específicos das Ordens, consequência de protocolos estabelecidos entre estas e respetivos Institutos de Emprego, para que a situação fosse sanada. Com o benefício de ser o FSE a suportar este esforço..Outro, seria a previsão orçamental para os estágios, ou seja, a entidade que acolhe o estágio provisiona o remanescente entre o que o Instituto de Emprego assume, e o valor mínimo inscrito na lei..Ou ambos..Não esquecer que atualmente temos 51 estágios à Ordem dos Nutricionistas a decorrer e, anualmente, inscrevem-se 300 colegas..Uma terceira via seria a abertura do processo para revisão dos estatutos, eliminando a obrigatoriedade dos estágios à Ordem. Mas, considerando as obrigações legais, e a solução urgente do problema, essa via terá de ser feita paralelamente, até para cumprimento dos prazos legais a que as ordens profissionais estão obrigadas. Depende da vontade política..Não me esqueci da outra opção prevista na lei, o estágio formativo, em substituição do Estágio Profissional. Bandeira que, inclusive, é bramida por muitos dos que ajudaram a criar este problema..Obviamente não considero uma mais-valia para os estagiários, até porque a formação não se pode sobrepor à formação pre-graduada. Que formação seria? Quem a daria? Em que moldes? E trariam benefícios? O que é que eles têm para aprender que ainda não o fizeram no ciclo do curso? Como pode conferir competências em contexto de trabalho?.A meu ver é mais uma daquelas fugas para á frente, à boa maneira portuguesa. Não há trabalho? Faz-se mais uma formação! Para que serve? Não façamos perguntas impertinentes!.Os colegas precisam de iniciar atividade profissional, de colocar em prática tudo o que aprenderam na formação académica. Não de mais formação, necessariamente redundante..Já agora: quem financia a formação? O problema não se mantém?.Recai novamente o ónus nos jovens colegas?.E quem beneficia com esta formação?.Custa-me a crer que não se consiga encontrar uma solução..Volto a sublinhar que o tempo urge e temos de encontrar respostas que vão de encontro às expetativas criadas..Num curto período de tempo teremos milhares de jovens licenciados encurralados. De nada servirão as medidas, já tomadas, para o primeiro emprego, porque serão muito poucos a chegar a essa fase..Apesar de esta ser uma realidade transversal a outras Ordens Profissionais ( advogados, arquitetos, notários, solicitadores, entre outros) a minha obrigação primeira é com os nutricionistas, porque são esses que eu, e a minha Ordem, defendemos. Mas, naturalmente, desejo uma solução para todos.