Zero vírgula dois por cento
1 Não há cultura. Em plena Guerra Mundial, não havia dinheiro para nada, penúria completa, o governo britânico estava reunido para aprovar o Orçamento do Estado: "Cortamos na Cultura", sugeria em desespero um ministro das Finanças que já esgotara soluções e imaginação para fechar os números. Não era uma questão de compromisso, muito menos de honra, apenas faltavam recursos para tanta necessidade.
"Acho perfeito, mas agora expliquem-me uma coisa: se é para cortar na Cultura, então porque estamos em guerra?" - e assim arrumou a questão o primeiro-ministro da altura, um tal de ilustre Churchill que, mesmo depois destes anos todos, mesmo já morto e enterrado, nos faz o favor de lembrar que as grandes crises da história da humanidade foram vencidas com liderança, arrojo, visão, gente inspiradora que nos apontava a Lua, quando toda a gente só olhava para o dedo.
2 Simplesmente não veem. Não tenho simpatia pela arrogância, qualquer que seja a forma de expressão de uma superioridade que, no momento em que se manifesta, é sinal de que não existe. O desprezo intelectual é sinal de fraqueza - e não o contrário. Como é cobarde ser forte com os fracos - quando tantas vezes se foi fraco com os fortes.
Dito isto, é impossível não insultar esta liderança europeia, considerá-los todos burros, exasperar por não verem aquilo que a todos é óbvio e evidente. E não é evidente que "a Europa do défice" é curta e desmobilizadora? Não é óbvio que este não é o momento para a Europa sacrificar princípios e a urgente necessidade de união, impondo sanções a um país que não cumpre 3% de défice por apenas duas décimas?
Entre a arrogância e o silêncio, não há como hesitar: são todos incapazes, comissários e ministros, burocratas e europeístas, os que dão a cara e os que se escondem, são medíocres aqueles que exigem sanções contra Portugal e Espanha porque, incapazes de ver um palmo à frente, encontram na punição a forma de desenhar o futuro da Europa, que procuram no castigo exemplar a forma, a única que conhecem e conseguem, de exercer o poder e impor respeito.
Em nome da credibilidade, exibem autoridade. Criam o medo para que não se desfaça a união. Perguntam: se não fazemos cumprir as regras, quem irá acreditar em nós? Por duas décimas, por um punhado de euros, nós os pobres coitados, nós que somos mais pobres do que coitados, que não acreditamos mas dependemos. Gente tacanha! São insolentes. Temos a noção. Mas não temos dinheiro. Nem outro remédio.
3 Incumpridores nos confessamos. A Europa neste estado deveria ser a razão fundamental para Portugal recuperar o juízo que perdeu há muito. O desnorte europeu não desagrava as responsabilidades que temos. Sim, gastamos e devemos. E não cumprimos. Há sete anos que violamos o Tratado que em Lisboa celebrámos. Sete anos com défice acima dos 3%, sintoma de que não somos capazes de nos governar a nós próprios. O equilíbrio das finanças públicas é um desígnio frouxo para um povo - quanto mais para um projeto que pretende mobilizar vários povos. A questão para os europeus frouxos é os 0,2 por cento. Para os portugueses são os 40 anos de défices crónicos, que o nosso Estado gerou, que anos a fio escondeu, mas mais tarde teriam de ser revelados numa dívida que ficou impossível de pagar.
4 Entre Passos e Costa. Não folga ninguém. Porque se um politiza, o outro partidariza. O presidente do PSD, que apertou na austeridade e nunca cumpriu uma meta, encontra na falta de credibilidade das atuais políticas a razão das sanções. Ou seja: não deseja as sanções, mas legitima-as. E este primeiro-ministro transforma uma questão de Estado num problema de governos: foi o outro, não o meu. A geringonça fragiliza a posição portuguesa, não tanto pelo facto de o Bloco de Esquerda pedir um referendo, mas porque opções deste governo são essencialmente erradas. Concordo com os dois: seremos sancionados por culpa de Costa, por culpa de Passos, por culpa de Sócrates, por culpa de Barroso, de Guterres, de Cavaco, de...
5 Como vamos evitar a multa? A Comissão chuta para o Ecofin, que chuta para a Comissão, que chuta para Lisboa, que deverá ter de apresentar medidas adicionais para o Orçamento de 2016. Com a economia a fugir debaixo dos pés, com as medidas expansionistas que a geringonça já criou (e evidentemente não as pode assim, tão de repente, anular), não se vê outra alternativa possível: aumento do IVA. Mais impostos, mais austeridade, tanto esforço para o mesmo défice de sempre. Três por cento é a medida do nosso fracasso. Mas é com a vírgula e com o dois que eles embirram. Que mediocridade se tornou esta forma de vida.