Vergonha de sermos nós

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1 Não sabem do que falam. Não fazem a mínima ideia do que a miséria é quando falam da miséria. A visita curta, as escassas 48 horas que passei naquele campo de refugiados no Norte do Quénia, fronteira com a Somália, fez-me descer fugazmente ao degrau mais baixo da pirâmide do desenvolvimento humano, mas o que sobrou nos dias seguintes foi a intolerância com as palavras.

Depois daquilo, depois da privação total, daquela vida em isolamento, daquela terra alguma, não era suportável ouvir analistas, jornalistas, políticos, a gente comum afirmar coisas do género "a miséria está a crescer em Portugal". A política da troika, a austeridade que a antecedeu, os cortes e sacrifícios, tudo isso abriu feridas sociais, aumentou o risco de exclusão e a pobreza de facto devastou famílias com o desemprego de longa duração - mas... miséria?!!

Sabem lá o que é a miséria. Vão lá a África, entrem por aquele imenso território adentro e quando chega a algo que poderia ser o fim do mundo ainda há um campo de refugiados mais à frente. Kakuma era o caso, poderia ser Dadaab, um pouco mais a norte, ainda mais caótico. Falta tudo. E tudo é mesmo tudo. Foram os portugueses que, quinhentos anos depois, ali voltaram num projeto-piloto com a ambição de promover o acesso a bens essenciais sem a caridade ou donativo.

Permitir o acesso à eletricidade poderia simplesmente quebrar ciclos de pobreza. Exemplo: as mulheres do campo tinham de caminhar 100 km para apanhar lenha, única forma de cozinhar, porque as árvores desapareceram na zona, vinte anos e 80 mil refugiados depois. Era a falta de acesso a energia que originava o maior índice de violência contra as mulheres, pois eram atacadas, violadas e até assassinadas no caminho. Faziam-se acompanhar, para reduzir o risco e duplicar os braços, das filhas adolescentes - que assim não podiam ir à escola.

Através de uma ONG a operar no campo, 40 mulheres receberam formação para cozinhar em fornos solares. Juntaram-se e abriram restaurantes. O projeto não foi replicado, conforme estava previsto, por boicote ativo dos burocratas humanitários, que é a pior corja que conheci na vida - fomentam a dependência dos miseráveis, razão da sua própria existência e de empregos principescamente remunerados.

Outro exemplo: as crianças, mesmo aquelas que contrariavam a força do absentismo escolar, não estudavam à noite porque não havia iluminação nas "casas" e os pais não desperdiçavam querosene em luxos como ler um livro ou fazer trabalhos da escola. Quatro mil candeeiros solares foram entregues aos alunos, num modelo gerido pelos luteranos do campo, em que o recarregamento da bateria só podia ser feito em painéis colocados no "recreio da escola".

Ou seja, a criança tinha de voltar à escola para a família ter luz em casa. Não era à borla, porque com isto se tentou introduzir o conceito que contrariava toda a prática de uma vida, em que tudo é dado, em que tudo aparece sem esforço, os sacos de farinha de mandioca, os remédios que os europeus oferecem. O preço era simbólico (um dólar/mês) e representava um terço dos gastos que as famílias passaram a poupar em querosene e parafina. E com a receita arrecadada era constituído um fundo para escalar o projeto e reparar avarias.

Até ao dia em que o armazém dos luteranos foi assaltado, pelo menos com a conivência das autoridades do campo, e oferecidos aos refugiados as restantes escassas centenas de unidades por "alugar". O projeto foi boicotado, mas ainda assim as três mil e muitas crianças abrangidas melhoraram substancialmente as notas de disciplinas-chave, como a Matemática, segundo a avaliação de impactos que o ACNUR ainda permitiu que fosse feita.

2 Vi miséria e privação total. "Hospitais" que só ligavam os geradores para o bloco operatório. Subnutrição e ausência de qualquer perspetiva de mudar de vida. E vinham estes, os críticos de Passos e Gaspar, os adversários de Portas e da direita-de--trazer-por-casa, atacar as políticas neoliberais porque lançavam o país na miséria.

Não sabem o que é a miséria, não há miséria como aquela em Portugal. Felizmente, pensava eu, são apenas uns imbecis ou ignorantes. Não há tempo que apague o contraste entre as luzes de Lisboa e o céu africano que esmaga Kakuma. Não há como relativizar as carências dos nossos hospitais com a total ausência do conceito. Nem há que contemporizar com tudo aquilo que aqui falha e sem razões plausíveis para isso.

O subdesenvolvimento dos outros povos, o atraso indigno que a humanidade permite noutras geografias, jamais pode servir de anestesiante para uma sociedade que, como a nossa, deve exigir mais do que chorar, deve construir mais do que criticar - deve, em suma, erguer-se na defesa dos sistemas públicos e do Estado, para que este nunca falte a quem dele mais necessita.

E devem, é verdade, ser valorizados os esforços deste governo no apoio aos mais pobres. Com a mesma convicção que se deve recusar este populismo serôdio de ataque aos ricos - quais ricos, onde estão os ricos neste país de falidos e descapitalizados?!

Quarenta anos depois, a conversa entre Otelo Saraiva de Carvalho e o então primeiro-ministro Olof Palme tem de ser recordada: "O que pretendem com a vossa Revolução?" e Otelo não hesitou - "acabar com os ricos". Pois nós queremos acabar com os pobres e não conseguimos.

Pobreza na Escandinávia é um conceito difícil de explicar a qualquer habitante de Kakuma. E ver Kakuma em Portugal é uma tradução impossível de fazer. Pois foi Kakuma que vi surgir, na casa, um buraco indescritível onde vivem aqueles idosos, cavernícolas dos nossos tempos que de rompante entraram nas nossas casas no domingo à noite, numa extraordinária reportagem (mais uma...) da jornalista Ana Leal.

Gente como nós, podiam ser nossos avós, que não sabe o dia, o mês ou sequer o ano em que vive. Portugal 2016. Que vergonha, que raiva. Vergonha por permitirmos que exista. Raiva por um dia ter pensado que a miséria já não existia no país em que vivemos.

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