O VAR rouba protagonismo a Cristiano Ronaldo
Cristiano Ronaldo foi o melhor jogador na primeira semana do Mundial, o único cujo o impacto esteve à altura da sua fama, mas a estrela é o videoárbitro (VAR), um novo sinal da desnaturalização do futebol. É um tempo temível em que tudo se justifica em nome do dinheiro e do seu ambiente produtivo. Atrás, muito atrás, começa a ficar o adepto, sujeito central do futebol até há pouco tempo, convertido agora num consumidor alienado, sem outro papel que não o de engraxar um dos grandes negócios do século XXI. Nesta festa mercantil não podia faltar a tecnologia, outro impressionante negócio em constante movimento. Com o álibi da justiça e da suposta modernidade que representa o modelo americano (NFL, NBA, MLB, NHL), o futebol começa a abandonar as regras simples que o ajudaram a estabelecer-se como desporto universal por antonomásia.
Exceto o Portugal-Espanha, que adquiriu imediatamente a condição de clássico, não foi uma boa semana de futebol. Serviu, entre outras coisas, para coroar Cristiano Ronaldo numa competição em que apenas havia deixado marca nas edições anteriores. Já tem um momento para recordar, tal como De Gea, guarda-redes de estilo antigo, popular pelos reflexos entre os postes que o abandonaram nos últimos jogos. De sucessor indiscutível de Casillas a problema com luvas.
Nenhum dos favoritos impressionou pelo seu jogo. Quase todos, com a Argentina à cabeça, dececionaram, mesmo que isso signifique muito pouco. Os Mundiais definem-se pela forma como acabam, não como começam, e a história diz que Alemanha e Brasil terminam normalmente melhor do que ninguém. A primeira fase é o tempo dos pequenos. Em 2002, o Senegal derrotou a França, campeã em 1998. A Costa Rica classificou-se em 2014 e eliminou a Inglaterra e o Uruguai no seu grupo. A Nova Zelândia impediu que a Itália passasse à fase a eliminar em 2010. O mais raro foi a vitória da Inglaterra sobre a Tunísia no último minuto. Os ingleses são especialistas em autodestruir-se nos Mundiais. O normal teria sido um erro do seu guarda-redes e uma vitória da Tunísia no último minuto. Há que estar atento: o segundo golo de Harry Kane talvez signifique uma mudança no destino inglês.
A visão espanhola está mediatizada pelo VAR, o novo brinquedo do futebol. E chegou para ficar. É de tal maneira publicitado que qualquer crítica é interpretada como um ataque à modernidade, um regresso aos tempos cibernéticos dos analógicos, uma lágrima nostálgica e, ainda pior, um desejo de atropelar a justiça objetiva. No futebol a subjetividade funcionou às mil maravilhas desde o dia em que decidiu pôr um árbitro, com nome, apelidos e morada, como juiz dos sucessos em campo. É claro que o árbitro é uma figura falível, mas a sua função humaniza o jogo, liga-o ao adepto e coloca o futebol num espaço simples, onde não faz falta ir para um quarto escuro, ocupado por senhores vestidos de árbitros, vigilantes anónimos de um jogo que em breve começará a perder a sua fluidez natural.
O pior de tudo é que a promessa de justiça não se cumpre. Funciona no olho de falcão, uma tecnologia barata, objetiva e veloz, mas o VAR é outra coisa. Em primeiro lugar obriga os adeptos a ver futebol com um manual de instruções, menos simples do que aquilo que parece. Quanto à justiça, o VAR não a garante de maneira nenhuma, e até a coloca no pior cenário possível: estabelece a justiça seletiva. Decide o que é importante e o que não é, sem entender que o futebol é contínuo e que, por exemplo, o primeiro golo de Diego Costa é antecedido de uma falta indiscutível do avançado espanhol sobre Pepe.
Pelo que vemos do VAR no Mundial, o seu funcionamento desconcentra mais do que a velha arbitragem. Por qualquer motivo, este sistema tão objetivo não castigou o empurrão de Zuber a Miranda no golo da Suíça ao Brasil, nem a falta de Diego Costa sobre Pepe, nem o derrube na área de Pavón no Argentina-Islândia, entre outras várias ações que o VAR não considerou ou tomou uma decisão incorreta. Os apologistas do VAR dizem que acertou noutras decisões, uma justificação débil para um sistema que se engana mais do que devia, incapaz de cumprir com a grande função que prometia.
Santiago Segurola pertence à equipa de cronistas do DN durante o Mundial da Rússia