A neutralidade será resolvida à americana: em tribunal
Há poucas frases mais tipicamente americanas do que "I"ll see you in court". Possivelmente, só mesmo "I"ll sue." Pelo menos, é o que os filmes e as séries de televisão deixam no imaginário coletivo: tudo nos Estados Unidos da América pode ir parar a tribunal.
Na história recente, o poder judiciário dos EUA já foi responsável pelas decisões mais comezinhas (a obrigatoriedade de o McDonald"s avisar que o café servido pode estar quente, depois de uma senhora se ter queimado) aos mais fundamentais (da abolição da proibição do aborto aos resultados das eleições presidenciais de George W. Bush contra Al Gore). Agora, vai ser a vez da chamada "neutralidade da internet" (algo que não será tão relevante quanto os dois últimos exemplos que referi, mas não está longe - leia este texto e mais este).
São já 22 os procuradores estaduais que se juntaram numa ação única para obrigar a comissão federal de telecomunicações (FCC) a reverter a decisão, anunciada em meados de dezembro pelo seu novo presidente, Ajit Pai, de acabar com a obrigatoriedade de os fornecedores de internet tratarem todo o tráfego online da mesma forma, independentemente da sua origem ou conteúdo.
Argumentam os procuradores que a medida é "arbitrária, caprichosa e um abuso do poder discricionário" da FCC. O tribunal decidirá se têm razão.
Entretanto, alguns governos ou parlamentos estaduais preparam legislação com vista a garantir a manutenção da "neutralidade". Califórnia, Nova Iorque, Carolina do Norte e Illinois têm já documentos preparados nesse sentido.
As contestações à medida ao mais alto nível não se ficam por aqui. Em Washington D.C., o Senado também tem preparado um decreto legislativo que repõe as proteções que estavam em vigor. São já 50 os senadores que apoiaram o documento - todos os democratas e uma representante republicana, do Maine -, o que deixa a lei a um voto de ser aprovada.
Conclusão, e parafraseando Mark Twain: a morte da neutralidade da internet nos Estados Unidos foi um bocado exagerada. Tal como tem acontecido com outras decisões da administração Trump, os órgãos de soberania estão a fazer o seu papel, o sistema de pesos e contrapesos da democracia está a funcionar. E isso sempre nos vai dando esperança.
Falta literacia tecnológica
Há uma citação de Carl Sagan de que gosto muito - e que penso mesmo já ter utilizado numa destas crónicas, que descreve na perfeição a sociedade atual: "Criámos uma civilização global em que os seus elementos mais essenciais - transportes, comunicações e todas as outras indústrias, a agricultura, a medicina, a educação, o entretenimento, a proteção ambiental e até a instituição-chave de qualquer democracia, que é a votação eleitoral - dependem profundamente da ciência e da tecnologia. Ao mesmo tempo, também conseguimos organizar tudo de modo a que quase ninguém compreende a ciência e a tecnologia. Isto é uma receita para o desastre. Até somos capazes de viver assim durante algum tempo, mas mais cedo ou mais tarde esta combinação explosiva de ignorância e poder vai rebentar-nos nas mãos."
Depois, há aquela atitude bem típica de um certo tipo de pessoas em lugares de poder, a que costumo chamar de "arrogância da ignorância" - não sabem, acham que sabem e têm opiniões inabaláveis sobre tudo.
Donald Trump, o último ano, já o demonstrou até demasiado bem, é a síntese quase perfeita desta descrição. A todos os níveis, estamos mesmo muito perto de ter isto tudo a "rebentar-nos nas mãos".