Seria capaz de matar a Ana Catarina?
No dia em que a Ana Catarina me apresentou o formulário do testamento vital para assinar caí das nuvens. O cancro incurável, diagnosticado dias antes à mulher que eu amava e com quem vivia há trinta anos, deixara-me atordoado. A leitura do documento, que faria de mim o responsável pela execução da sua vontade médica quando chegasse a fase terminal da doença, arrancou-me do torpor narcótico onde me refugiara, em negação, e despertou-me, violenta, para a crua, sibilina e mesquinha realidade... Fez-me bem.
Tenho a dizer, então, que a realidade de uma doença incurável e prolongada comprovou-me as limitações dos cuidados paliativos.
Apesar de dispor do melhor da medicina, a Ana Catarina recusou passar o tempo que lhe restava metida em consultórios e hospitais e, muito menos, a ficar permanentemente drogada com analgésicos poderosos, carregados com morfina ou derivados. Ela não quis viver os seus últimos dias com alucinações, semiconsciente, sem capacidade de raciocínio, sem emoções para dar ou receber, com o cérebro entorpecido e o corpo dormente.
As dietas, os exercícios, as massagens, os cremes, os mais de 30 comprimidos diários, os ventiladores, a dedicação de médicos e enfermeiros excecionais, que foram capazes de fazer milagres a prevenir e a eliminar dores fortíssimas, acabariam por perder o combate.
A Ana Catarina recusou o excesso de tratamentos porque recusou fingir viver, recusou deixar de ser a Ana Catarina e, por isso, a ciência quase nada conseguiu fazer, nos últimos quatro meses, quando a doença lhe deu a "Dor", a grande, insuportável e prolongada "Dor".
Primeiro, a "Dor" começou por fazer visitas semanais, depois de três em três dias... Cheguei a estar oito horas sentado, ao lado dela, de mão dada, sem nada poder fazer.
Por vezes, a Ana Catarina aceitava aumentar a química até aos limites receitados pelos médicos, mas, na verdade, mesmo depois de o corpo deixar de responder à força de vontade, ela, de cama, em casa, manteve a maior parte do tempo lucidez, controlo da situação e, até, sentido de humor!
Falámos de eutanásia. Na prática era muito fácil: a acumulação de sobras de doses gigantescas de analgésicos receitados durante dois anos e meio permitiu à Ana Catarina ter no armário uma quantidade suficiente de drogas para executar, com segurança, um hipotético suicídio. Mas ela perguntava: "Se eu não for capaz, tu fazes-me isso?..."
Não foi preciso responder. Depois de receber no quarto, bem-disposta, durante uma tarde inteira, uma verdadeira procissão de familiares e amigos, depois de ter brincado na cama com um gatinho recém-nascido que lhe trouxeram, ela adormeceu, cansada, a sorrir. Quando chegou a hora de lhe dar os comprimidos habituais, não a consegui acordar. No dia seguinte, morreu, serena.
A primeira coisa que penso quando oiço algumas pessoas debaterem o tema da eutanásia é detetar uma certa indiferença sobre a forma de viver o tempo que antecede o tempo de decidir a morte. Há muita gente preocupada sobre a melhoria da qualidade dos cuidados paliativos - e têm razão - mas esta questão vai muito para além do controlo da dor.
A Ana Catarina ensinou-me que o sistema de saúde, público ou privado, não entende doentes que procuram, como ela, diminuir ao mínimo o tempo passado com médicos, exames clínicos, quimioterapias ou salas de espera.
Pessoas como a Ana Catarina, que decidem enfrentar a "Dor" para viverem todo o processo de forma plena e consciente, não são bem tratadas pelo sistema, apesar de estarem informadas, documentadas e esclarecidas por especialistas sobre a medicação capaz de lhes dar mais tempo mas que produz efeitos secundários com perda dramática de qualidade de vida. A medicina, a farmácia, sabem internar, diagnosticar, receitar, consultar, testar, experimentar, drogar... Um doente que exige estar fora desta indústria é um embaraço.
Os cuidados paliativos, disse-me a experiência mais violenta da minha vida, não são o cerne da questão no debate sobre o sofrimento atroz que justifica a eutanásia. O cerne da questão é este: como dar a estes doentes um tratamento e um final de vida verdadeiramente humano, muito para lá do mero saber médico? Como dar a estas pessoas tudo o que elas desejam, seja apenas ausência de dor, seja apenas ir para casa ter com a família? Que podemos fazer por eles nos dias anteriores ao dia de encarar a forma de morrer?
Se a sociedade souber responder bem a estas perguntas, então a questão da eutanásia pode debater-se de consciência tranquila por tudo ser feito para ajudar, de facto, as pessoas que optam por morrer. Agora, estamos longe disso.
Aprovar, porém, a eutanásia nesta fase será bom para respeitar a liberdade individual dos desesperados. Aceito isso, com muito receio. Mas exijo a toda a sociedade muito mais para tentar evitar o desespero dessas pessoas.
Eu mataria a Ana Catarina, se ela, impotente no sofrimento, me tivesse pedido? Acho que sim, mas não tenho a certeza.