As manhas da EDP
Imagino que poucos tenham percebido a totalidade do significado de uma frase enigmática de António Costa. Foi em junho passado que ele afirmou ter “conhecimento de como certos operadores, designadamente a EDP, têm várias manhas para conseguir contornar muitas vezes, com a indevida cobertura das entidades reguladoras, aquilo que é garantido”. Quais as manhas? Não o disse na altura, mas agora já está mais claro.
António Costa atirava a pedra ao telhado das entidades reguladoras, acusando-as de beneplácito e “cobertura” de comportamentos indevidos. Contudo, atirar a pedra para telhado alheio não tem bom resultado quando o nosso é de vidro.
Foi exatamente o que se viu com a alteração de voto que o PS fez numa das propostas do Orçamento do Estado. As manhas que António Costa quis esquecer são as proximidades entre o poder político e os grandes grupos económicos, as pressões que estes exercem sobre quem decide e como conseguem colocar governos na defensiva. A julgar pelo que aconteceu, António Costa sabia bem do que falava. A proposta do Bloco de Esquerda era simples: criar uma “contribuição solidária para a extinção da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional”, que taxaria o abuso que é praticado nos preços da energia renovável em Portugal quando em comparação com a média internacional. É em linha com o que já está a ser aplicado em Espanha e que conseguiu reduzir o peso da fatura da eletricidade no país de nuestros hermanos. Aqui permitiria ir buscar 250 milhões de euros ao esbulho que as elétricas praticam ao país.
No entanto, mexer nos monopólios é como mexer num ninho de vespas e logo as pressões se iniciam. E é isso que tem dado longa vida às rendas abusivas no nosso país. Os diversos governos têm sempre preferido sacrificar as pessoas e os seus direitos a tocar nos lucros dos grandes grupos económicos e nos seus privilégios garantidos.
Há outras manhas das energéticas, além da sua proximidade ao poder político. Veja-se as notícias recentes da fuga de investimentos no nosso país. Pura propaganda, como se percebe. Em Espanha, o rendimento nas mesmas situações é menor do que em Portugal e não é por isso que deixa de haver investimento. A EDP que o diga, que mesmo assim ainda tem bastante lucro da produção energética do outro lado da fronteira. A não ser, é claro, que o investimento apenas fosse para aproveitar uma renda abusiva e garantida e, com isso, explorar ainda mais o nosso país. Se era deste tipo, faz tanta falta como uma viola num enterro.
Um outro argumento que não faz sentido é o da litigância que a medida iria criar. Por um lado, os espanhóis conseguiram fazer o que estamos a propor e venceram a litigância. Por outro lado, não devemos esperar que as empresas com interesses tão significativos deixem de lutar por eles. O que não podemos é assustar-nos com isso e deixar de lutar pelo interesse público. Isso é a cedência permanente a qualquer chantagem de privados.
António Costa esteve mal, portanto. O PS tornou a ser o PS do qual as pessoas desconfiam e deixou a sua veia das clientelas económicas sair vitoriosa. Perderam as pessoas, que continuarão a ser roubadas em cada fatura da eletricidade.
O que podemos retirar deste caso? Em primeiro lugar, serve para responder de imediato a duas perguntas sobre os atores políticos desta solução governativa. Como seria um governo maioritário do PS? E como seria um governo do Bloco de Esquerda? Um governo maioritário do PS não tocaria num cêntimo nos interesses da elite económica - não aumentaria o salário mínimo a cada ano, não levaria a tarifa social de energia a 800 mil famílias, etc. Um governo do Bloco de Esquerda poria um fim nas rendas parasitas que atrasam o país.
E o que diz este caso sobre a atual solução governativa? Mostra como só arrastado é que o PS aceita tocar nos interesses instalados para lá do que foi estabelecido nas posições conjuntas no início da legislatura.
Por isso, é de prestar atenção a um dos dossiês que estão em suspenso: as alterações ao Código do Trabalho. O governo tem protelado as alterações à contratação coletiva, a penalização da precariedade no privado e a recuperação dos direitos do trabalho que a troika levou. Na segunda parte da legislatura, veremos se o governo aprendeu alguma coisa com o que se passou nos últimos dias e qual a resposta à pergunta de Sérgio Godinho: Pode alguém ser quem não é?