No jogo das claques é a verdade que se perde
Se eu elogiar o trabalho de Mário Centeno e os resultados conseguidos com o défice orçamental, é certo que sou de esquerda e não me importo que o ministro minta no Parlamento. Se eu criticar a forma como Mário Centeno geriu o dossiê CGD, é certo que sou de direita e estou incomodado com a performance financeira que o ministro conseguiu. Ora, como eu elogio Centeno pelos resultados e o critico pela forma, já marquei consulta na psiquiatria do SNS, porque o mais certo é ser bipolar. Rezo a Deus que a consulta seja marcada para antes das autárquicas, não me vá dar para começar a fazer riscos e sarrabiscos no boletim de voto.
Devo confessar que a maior preocupação nem sequer é comigo. Humilde comentador, em estado temporário de diretor do DN, não provocará grandes estragos a alergia que for capaz de transmitir a uma e a outra claque. O que me preocupa é que esta doença que me afeta e afeta igualmente outros cronistas parece ter atacado forte o senhor Presidente da República. Agora que Marcelo também consegue ver qualidades e defeitos numa mesma pessoa, as claques já não gostam dele. Preferem-no totalmente alinhado. Ou sim ou sopas. A claque socialista, então, é que estava mesmo mal habituada. A claque da direita, intolerante que andava, anda agora mais calminha.
Eu bem que tinha avisado o senhor Presidente da República, já lá vão três semanas, em crónica publicada neste jornal. Pensei tratar-se de um ponto de inversão no estado de graça, mas não, era mesmo coisa mais profunda, a recomendar repouso absoluto. Lá saberá Marcelo que caminhos deve trilhar, mas da experiência que tenho de os ver funcionar lhe digo que não continue com serenatas à chuva que o pessoal das claques é doido de papel passado e não costuma perdoar.
Bem sabemos que o povo, de uma forma geral, está farto do folhetim Centeno-Domingues e que, por isso, de pouco valerá à direita uma nova comissão parlamentar de inquérito. A história, por muito que custe a quem nela se viu envolvida, merecia ser contada e foi contada. Mais trica, menos trica, está contada. Agora, adiante, que é preciso voltar atrás.
Antes que chegue a altura de nos explicarem em que consiste a recapitalização da Caixa e o seu plano de reestruturação, estávamos todos à espera de que meses de trabalho na Assembleia da República tivessem servido para alguma coisa. Por exemplo, quais são as imparidades? Quem são os maiores devedores? No fundo, a quem vai o povo pagar com os seus impostos os milhares de milhões de euros que foram desbaratados? O que se julgava impossível acaba por acontecer. Direita e esquerda entendem-se na berraria para silenciar a verdade. A verdade que interessa ao povo contribuinte. Serão os deputados capazes de fechar uma comissão, em que foram ouvidas dezenas de pessoas, sem se responsabilizarem por uma conclusão? Sem que haja consequências do desastre que foi a Caixa durante anos?
Esquerda sem espaço para fazer "oposição"
Não deixa de ter piada o embaraço com que a esquerda teve de guardar a viola no saco. Antes dos e-mails e dos sms, era vê-los engrossar a voz para exigir do executivo socialista a inclusão de todos os precários no Estado, mais a reversão da legislação laboral do tempo da troika e a continuação da reposição de rendimentos. De repente, ficaram sem espaço. A comunicação social não tem tempo mas, acima de tudo, comunistas e bloquistas sabem que não podem contribuir para fragilizar ainda mais o governo.
A legislatura entrou definitivamente numa fase nova. Já ninguém está em estado de graça, já ninguém tem espaço para cometer erros sem pagar por isso. É bem provável que a crispação que Marcelo erradamente julgou ultrapassada volte a crescer, em ano de eleições autárquicas, entre o bloco de direita e o de esquerda. Ao mesmo tempo, a relação entre os partidos da coligação tenderá a voltar à artificialidade em que viveu o primeiro ano. De desacordo em desacordo até ao acordo orçamental. Se pensavam que tinha chegado o momento de cada um afirmar sem complexos a sua agenda, terão agora de preparar muito bem o tempo e o espaço em que permitem à coligação fazer oposição a si própria.
É por tudo isto que não me preocupa a alegada fragilidade de Mário Centeno. Ele tem resultados para apresentar e se decidir continuar no governo a sua autoridade política será reposta mais cedo ou mais tarde. Problema sério é se o Presidente se fragilizou a tal ponto que já ninguém se preocupe em estar nas suas boas graças. A autoridade presidencial ainda não foi verdadeiramente posta à prova e o país ainda vai precisar da inteligência de Marcelo.