A azia presidencial
Tal como a 23 de janeiro de 2011, a noite em que ao tornar-se o Presidente reeleito com o menor número de votos da história da democracia se deixou dominar pelo rancor contra os seus adversários, Cavaco Silva não resistiu, mais uma vez, ao ressentimento e à mediocridade.
Alguns dirão que o discurso do Palácio da Ajuda, na posse do XXI Governo Constitucional, foi apenas a afirmação óbvia dos poderes presidenciais de que dispõe a três meses do fim de mandato. Mas, na verdade, aquilo que se viu foi um homem amargo e contrafeito por estar limitado nos seus desejos e incapaz de digerir todas as soluções que a democracia oferece, por mais originais que elas sejam.
É sabido que Cavaco nunca quis esta solução. Fez aliás tudo o que podia para a protelar e evitar. E nem sequer hesitou em recorrer ao mais sectário dos discursos produzidos no pós-25 de Abril por um chefe de Estado - foi a 22 de outubro de 2015 que brutalizou PCP e BE -, para condenar ao degredo político partidos que há 40 anos aceitam o jogo democrático. Está no seu direito enquanto cidadão, mas como Presidente da República compete-lhe não discriminar ou sequer ser força de bloqueio. E ontem ameaçou vir a sê-lo. Cavaco fez questão de sublinhar que António Costa só é primeiro-ministro porque ele, o Presidente, está impedido de dissolver o Parlamento e, desta forma, procurou diminuir a legitimidade desta solução que, política e constitucionalmente, é incontestável. Afirmou, em tom de ameaça, que não abdica de nenhum dos poderes que a Constituição lhe confere - era o que faltava que o fizesse -, deixando por isso em aberto a hipótese de vetos políticos constantes e até, no limite, a demissão do governo para assegurar o regular funcionamento das instituições. Citou relatórios da OCDE, do Conselho de Finanças Públicas e do Banco de Portugal para, de forma implícita, afirmar que não confia nas opções de política económica e financeira do novo governo que, apesar de tudo, aceitou empossar. E o resultado da soma de tudo isto, levado à letra o infeliz discurso, seria uma aberração política e democrática. Ou seja, a consequência lógica das palavras de Cavaco Silva seria um governo sob tutela presidencial, impróprio de uma democracia parlamentar como a nossa, e, no limite, a ida a votos, tantas vezes quantas as necessárias, até que o resultado fosse do seu agrado. Provavelmente, e na altura ninguém percebeu, era a isto que se referia Passos Coelho quando decretou a doutrina do "que se lixem as eleições". Felizmente, em 1982, o legislador constitucional foi sábio porque há alturas na história em que, como se vê, os presidentes podem ser perigosos.
É certo que vivemos um tempo novo em que o governo que tomou posse é de um partido que não ganhou as eleições. Mas isso não lhe retira qualquer legitimidade porque, além de conformado pela Constituição, os governos, como bem explicou o novo primeiro-ministro, respondem politicamente perante a Assembleia da República e não perante o Presidente da República. E também é verdade que as posições conjuntas - que nem acordos se chamam - são curtas e dão, aparentemente, poucas garantias de solidez e durabilidade. Mas isso, como se viu pela crise do irrevogável do verão de 2013, não é assegurado por mais firmes e robustos que sejam os casamentos.
Mas nada disso justifica a tentativa do Presidente de admoestar António Costa, usando a intimidação para lhe fazer sentir que está com contrato precário, recusando-se a encarar o facto de que é ele, Cavaco, quem já está no fim do prazo em Belém. O estrebucho, em dia de inauguração, era dispensável e não é bonito. Augura pouco de bom para a coabitação que resta. Mas, tal como o apocalipse decretado a 22 de outubro por Cavaco Silva foi combustível para a unidade das esquerdas, pode ser que também este discurso seja o cimento necessário para que as minorias relativas que se somaram para deitar abaixo a direita se transformem agora numa maioria mais do que conjuntural.