O regresso das claques

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Nos últimos dois meses assistimos ao regresso em força das claques. A direita e a esquerda voltaram a polarizar e o espaço público ficou, de novo, totalmente ocupado pelas claques. As claques são um mote de alguma reflexão que desenvolvi no passado e absolutamente atualizada perante as controvérsias destes últimos dois meses. Deixo para a próxima semana as novidades nesta matéria. Hoje opto por uma breve resenha. Como tive oportunidade de escrever em tempos, não sendo um fenómeno português, nem sendo uma coisa recente, é hoje claro para todos que o discurso político no espaço público é fundamentalmente um conjunto de variações sobre a diabolização do adversário, para deleite das claques dos partidos. Esse fenómeno aumenta exponencialmente nas redes sociais, onde predomina o ódio e o insulto, em detrimento de qualquer debate racional. O "meu" partido faz tudo bem, o "meu" líder é um poço de virtudes, o "outro" partido faz tudo mal, o líder dos "outros" só tem defeitos. Foi, precisamente, tudo isto que ouvimos desde a tragédia de Pedrógão Grande.

Quando escrevi sobre o domínio das claques, em setembro de 2016, indicava as possíveis razões estruturais para isso (isto é, para além dos protagonistas conjunturais do atual momento político). Entre essas razões estruturais, destacam-se (I) o progressivo desaparecimento do eleitorado flutuante (quase metade, em 20 anos), (II) o ciclo político "pobre" desde 1999 (ausência de recursos para manter a base de apoio depois de obter uma maioria suficiente para governar), (III) a necessidade de mobilizar o eleitorado fiel nos círculos eleitorais menos cacicados (onde precisamente se disputa grande parte dos 49 lugares efetivamente em jogo dos 230 deputados a eleger), (IV) a progressiva falta de credibilidade das promessas eleitorais perante um desempenho deficiente de todos os governos desde 1999 e, consequentemente, o predomínio do discurso do medo, da ameaça, do diabo desconhecido, do estilo sem substância e (V) as mudanças operadas na geometria eleitoral desde 1995 (a estatisticamente comprovada viragem à esquerda do eleitorado entre 1995 e 2012, o sucesso eleitoral do BE, a alegada viragem à direita do PSD).

Perante o que ouvimos nas últimas semanas, dizer que o discurso "diabolizador" domina as redes sociais é absolutamente óbvio. Claro que a própria estrutura das redes sociais facilita os pompons e o "tu matas, eu esfolo", em detrimento de qualquer debate intelectualmente estimulante. Ora, se Facebook, Twitter e afins servem para "malhar" em vez de "discutir", menos óbvio e bastante mais grave é que o discurso maniqueísta "diabolizador" a que por lá se assiste domine a comunicação política mesmo em momentos tão trágicos como aqueles que temos vivido. E, no caso português, essa contaminação tem implicações estruturais bem mais graves, porque faltam os dois possíveis amortecedores: uma produção de ideias políticas e uma comunicação social saudável.

A ausência de produção de ideias é reconhecida. Em Portugal, nunca houve centros de criação de conhecimento para os partidos. Nunca houve think tanks, nunca as fundações ou institutos partidários fizeram qualquer esforço intelectual, nunca os famosos gabinetes de estudo produziram conhecimento. O pouco conhecimento que servia os partidos era produzido nas universidades, onde certos centros eram famosos pela sua proximidade aos vários partidos. A progressiva internacionalização das ciências sociais afastou a investigação dos potenciais interesses partidários. Por alguma razão, a participação de académicos na vida dos partidos desceu nos últimos 45 anos (evidentemente que não é zero) e correspondeu a uma crescente funcionalização dos quadros de PS, PSD e CDS.

Junta-se a comunicação social, principalmente as televisões. Quase todo o comentário político em canal aberto, ou em períodos de alguma audiência, é monopolizado por políticos, que se dedicam a fazer o spin do seu partido, a preparar as suas oportunidades futuras (aqui o atual PR é o melhor exemplo) ou a tratar dos seus negócios. Evidentemente que a última coisa que fazem é estimular reflexão. Não é o papel deles. Não surpreende, pois, que, para encher tempo em antena, os debates acabem a despejar o discurso "diabolizador", em vez de argumentos profundos (que logicamente muitos dos participantes não sabem). O debate em função dos atores políticos, e não dos temas, impede a troca séria de ideias. A maior consequência de tudo isto é que a linguagem na comunicação social deixou de ser um travão ao radicalismo das redes sociais, tornando-se, ao invés, uma forma de o difundir.

As redes sociais têm um papel fundamental em convocar as claques e abafar a voz de quem discorda. Daí também a utilidade cada vez menor das jotas ou dos antigos canais de influência (sindicatos, associações patronais, associações de estudantes, etc.). Hoje os partidos usam as redes sociais para chegar aos seus, condicionar os adversários e influenciar o espaço público de um modo muito mais eficaz do que aquelas organizações fizeram no passado. E essa eficácia faz-se sempre com a diabolização do adversário. Foi isso a que assistimos nestas últimas semanas.

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