Surfar a metáfora

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Não pratico surf, nunca pratiquei. Não calhou.
O que eu pratico há vários anos é a metáfora do surf. É perfeita para o que eu faço.
Acontece muitas vezes perguntarem-me qual é a minha profissão.

A resposta varia muito, consoante a atividade dominante nessa altura (pode ir de comediante de stand-up a administrador de empresa pública, e vice-versa).

Quando apresentava um programa de televisão relativamente popular dentro do género a questão estava resolvida: fazia televisão, era o tipo da televisão, o tipo daquele programa, o coiso...

E tudo o resto se eclipsava. Curiosamente, originava uma certa respeitabilidade e facilitava a vida, nomeadamente dava lugar a um tratamento mais atencioso em restaurantes e repartições várias.

Sem ser apresentador de televisão, não é fácil explicar o que eu faço. Escritor? Argumentista? Produtor? Ah, mas de quê? É preciso especificar e fica muito fastidioso.

Empresário pode ser uma boa resposta se não quiser grande conversa. É simples e as pessoas normalmente ficam satisfeitas. Muito menos desconfiadas do que com as respostas anteriores.

Ultimamente, a minha apresentação favorita tem sido: artista de variedades.

Gosto da combinação das palavras. Uma não deixa que a outra se leve a sério, não batem certo uma com a outra, como um casal que as pessoas acham que não, "não deviam andar um com o outro, não ficam bem juntos".

"Artista de variedades" dá a ideia de fazer várias coisas ao mesmo tempo e pode incluir metáforas diversas e sugestivas, como a de fazer rodar ao mesmo tempo vários pratos em diferentes varetas.

Sempre com um sorriso, ainda que, de vez em quando, se parta a loiça. Sabendo que pode haver um momento em que se parte a loiça toda. (Saber isso é a forma mais elegante de ser rebelde, que é ser sempre um cavalheiro, não partir um prato.)

A sociedade do espetáculo na era da proliferação dos canais e das redes sociais faz de todos nós que trabalhamos nos media
artistas de variedades.

A fragilidade laboral e negocial das profissões artísticas, intelectuais ou jornalísticas leva cada um de nós a uma atividade múltipla em diversas frentes - das mais individuais e mais recolhidas, de escrita ou pensamento, às mais coletivas e públicas, performativas ou de confronto.
Tal como os músicos - que mais do que nunca atuam em diferentes frentes: como compositores, como performers, a solo, em bandas com diferentes formatos e estilos, como produtores de outros músicos, como parceiros musicais de outros projetos artísticos (das instalações à dança, ao teatro, ao cinema), como promotores ou curadores de concertos, etc., etc., etc. -, também outros artistas, incluindo os escritores ou mesmo os anteriormente designados intelectuais, têm cada vez mais uma atividade pública múltipla e declinada em variadas plataformas e formatos.

Chego, por fim, à metáfora do surf.

O sociólogo Zygmunt Bauman teorizava uma modernidade líquida que tinha sucedido à modernidade sólida e dizia que no tempo em que vivemos nada é feito para durar.

Partindo de uma constatação semelhante mas com uma perspetiva radicalmente diferente, o cientista e surfista Joël de Rosnay, num muito interessante livro, Surfer la Vie (Surfar a Vida), fala de uma sociedade contemporânea fluida. Uma sociedade em que "as relações de fluxo vão ser mais importantes do que as relações de força", em que "a necessária solidariedade vai impor-se ao individualismo exacerbado".

E usando a imagem das duas realidades - a do oceano com as suas ondas e a da internet e a sua navegação - propõe a metáfora do surf como sabedoria para o tempo presente.

"O surfista não cria a onda, por natureza aleatória e caótica, ele usa a sua força, a sua potência para o prazer, o desafio consigo próprio. Surfar a vida é saber aproveitar e usufruir o instante, estar à escuta do ambiente à nossa volta, dos seus recursos, avaliar em tempo real os resultados da sua ação e adaptarmo-nos ao imprevisto."

"Surfar harmoniosamente a vida" é a proposta.

O livro foi-me recomendado pelo Eduardo Paz Ferreira numa conversa em que eu usava por piada a imagem do surf para descrever a forma como via o meu trabalho.

A metáfora do surf não deixei de a praticar.

Secreto surfista, todas as manhãs vou para o escritório como quem vai para o oceano. A minha secretária com a papelada e o computador aberto são a minha prancha. Vejo o que tenho para fazer, abro as pastas, ligo-me à rede. Observo as diferentes ondas do dia, as zonas rebentação. Vejo para onde hei de ir, escolho o lugar onde quero começar a ler ou a escrever, a tomar notas, a pensar, a não pensar em nada de especial.

(O meu escritório, o meu verdadeiro escritório é nas nuvens.)

Mãos no teclado, corpo na prancha. Respiro fundo. Espero pela onda. Concentro-me. E começa o dia.

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