O que nos faz correr

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Correr, correr, correr. Passamos a vida a correr de um lado para outro.
Vistos de longe, como vemos as formigas, nós, os humanos, nas cidades, de um lado para outro, não paramos. Qual é o nosso propósito?
Observemos os nossos movimentos, como se de um telescópio os observássemos, de um satélite que os vai monitorizando, do ponto de vista do extraterrestre.

Não nos ouvimos, não se sabe o que estamos a pensar, desconhecemos as motivações que nos levam a ir de um lado para o outro e para outro e de novo de volta e de novo para outro lado. Tudo o que vemos são os movimentos, os seus padrões, as repetições, as derivas, as paragens, as acelerações, os percursos individuais, os coletivos, as combinações - a coreografia humana.

O filósofo Paul Virilio propôs uma teoria da velocidade. No centro do seu pensamento está a forma como a evolução das sociedades é determinada pela tecnologia que muda o modo como nos deslocamos e ocupamos o espaço e o tempo.

Virilio desenvolveu o conceito de dromologia, a ciência da velocidade, ou da pressa (dromo, do grego, corrida; dromo era o terreno destinado a corridas).

Para ele, a sociedade contemporânea é a sociedade da pressa, que tem a forma paradoxal de ser a sociedade em que os homens se deslocam a velocidades muito maiores do que as velocidades a que viajaram no passado e, simultaneamente, o fazerem, na maior parte do tempo, de pé ou sentados, com o corpo praticamente imóvel.

No limite, esta é a sociedade da presentificação absoluta de tudo, da desmaterialização digital que a internet e o ciberespaço permitem, fazendo que possamos estar em todo o lado ao mesmo tempo - e ao mesmo tempo em lugar nenhum.

O lugar de resistência é - como sempre é - o corpo individual e a sua possibilidade de recusa da velocidade imposta ou vigente. O corpo e a sua coreografia pessoal e livre.
É interessante esta perceção da velocidade como uma forma de domínio.
Na nossa vida do dia-a-dia, a velocidade que escolhemos, ou aceitamos, para percorrer as rotinas e os acontecimentos, a organização social e o imprevisto, determina o nosso modo de vida.

Dominar a velocidade, poder escolher acelerar, abrandar, correr, caminhar ou parar é uma forma de poder individual sobre a pressão da sociedade contemporânea.

Pode ser um luxo, privilégio de classe abastada, que não do trabalho proletário do "sobe que sobe/ sobe a calçada" da Luísa do poema de António Gedeão. O domínio da velocidade está vedado aos trabalhadores mais pobres, sobretudo mulheres, mecanizadas em rotinas aceleradas de sobrevivência que as vão consumindo, sem escolha, esmagadas de trabalho e de cuidar dos filhos.

Pode ser um despojamento optar por uma vida lenta, menos urbana, mais contemplativa.

Quando somos crianças e adolescentes, correr é uma libertação, uma euforia física, o corpo na plenitude da sua pujança. Correr é a expressão da excitação de viver.
O que nos faz correr em adultos? Não falo da corrida do exercício físico para ficar em forma. Refiro-me ao que nos faz correr por dentro, o que nos motiva, o que nos faz voltar a ser adolescentes nem que seja só pelo tempo de uma corrida.
O que desejamos, o que queremos muito, o que nos leva a esquecer tudo o resto, o que faz o nosso corpo acordar e sorrir com o prazer de uma alegria antecipada. O que pura e simplesmente nos pode fazer correr, correr mesmo.

Um dos melhores finais de romance que conheço é o final de Os Maias, de Eça de Queirós. Os dois amigos Carlos e João da Ega assentam a "teoria definitiva da existência" e concluem que "não vale a pena fazer um esforço, correr com ânsia para coisa alguma". "Nem para o amor, nem para a glória, nem para o dinheiro, nem para o poder..."

Mas quando veem o elétrico, "o americano", ao fundo da rua, gritam: "Ainda o apanhamos! Ainda o apanhamos!"
E rompem a "a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia".
No outro dia aconteceu-me. Ia na rua e vi passar o 24. O elétrico da minha juventude, da minha juventude com amigos.
Tantas vezes corremos para o apanhar, tantas vezes nele fomos pendurados, com o vento na cara.

De Campolide para o Rato (onde dávamos uns toques na bola na grande praça central onde os elétricos paravam e mudavam de linha para voltar para trás) e de volta, do Rato para Campolide.
Amigos do bairro e do Liceu Pedro Nunes, segunda metade dos anos 1970, amigos para toda a vida.
Corri para o apanhar. Estava sozinho, mas corri e apanhei-o. Soube-me muito bem sorrir daquela maneira.

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