O governo e a sua circunstância
Não quero escrever sobre o que possa ser "governar" em abstrato. Governar é governar na circunstância e é esse governo que me interessa.
É sempre muito interessante procurar perceber o que fizeram ou não fizeram os anteriores governos perante as circunstâncias em que governaram. Esse estudo, que devia ser primeiro jornalístico, depois historiográfico, é raramente feito para lá dos aspetos superficiais. Pior do que isso, a interpretação da complexidade dos factos é substituída por preconceitos simplistas de claque que colocam a avaliação dos governos passados ao nível dos mais entrincheirados comentários das redes sociais.
É uma lacuna - evidente nos media, no debate público, mas também nas universidades, nas escolas ou na educação básica de cidadania - que condiciona e determina a atual circunstância.
É sobre esta que quero escrever, a situação em que nos encontramos, no momento em que um novo governo se está a formar para o nosso futuro próximo.
Primeiro, o governo no contexto mundial e sobretudo europeu.
Fazemos parte da União Europeia, espero que o meu governo seja determinado na defesa de um europeísmo democrático, que combata as desigualdades entre os Estados e alerte para as desigualdades dentro dos Estados. E que respeite as diferenças, que não sobreponha os interesses económicos, e sobretudo financeiros, a uma agenda clara e inequívoca de defesa dos direitos humanos e das liberdades e garantias contra as derivas autocráticas, nacionalistas e fascizantes no interior da União Europeia. O governo tem de garantir que Portugal terá uma voz e participação ativa na construção de maiorias, consensos, dinâmicas que defendam esta agenda, sem hesitações. Parece simples, mas é - sempre - complexo. E nunca fácil.
Portugal assumirá a presidência do Conselho da União Europeia de 1 de janeiro a 1 de julho de 2021, é um excelente momento para promover esta agenda, bem como outras duas tão importantes quanto esta: uma agenda verde, de verdadeira emergência ecológica, que deveria levar à proposta de criação de um Conselho de Segurança Permanente para urgências climáticas e ambientais, no âmbito da ONU; e um aprofundamento da relação Europa-África, concretizado numa já anunciada cimeira, essencial para procurar resolver questões tão decisivas como a dos refugiados oriundos dos países africanos devastados pelas guerras e pela fome.
Parecem generalidades distantes, mas se forem efetivamente concretizadas podem vir a ter efeito na vida concreta de cada cidadão europeu.
Depois, o governo no contexto nacional.
Portugal é um regime parlamentar e este governo vem na sequência do anterior governo, fruto precisamente de uma interpretação que nunca antes tinha sido experimentada do que é de facto um sistema parlamentarista: um governo que não foi do partido mais votado, mas sim um governo que garantiu o maior apoio parlamentar.
Isto foi, na minha opinião, um acontecimento virtuoso que contribuiu para o aperfeiçoamento da nossa democracia.
É fundamental que o Parlamento continue a ser o centro da nossa vida democrática e que o atual governo prossiga nessa prática de fazer da política uma permanente negociação de acordos com as outras forças democraticamente eleitas. É por esse posicionamento que deve passar a muito necessária valorização da política e dos políticos.
Como votante, de esquerda, o que espero do governo é que ele se concentre essencialmente em políticas que diminuam o problema central da nossa sociedade: a desigualdade. A desigualdade como foco principal e não secundário. Prioritário é acabar com as desigualdades, mais ainda do que promover o desenvolvimento económico. Porque este, sendo fundamental, normalmente não resolve por si a questão da desigualdade.
Tal como a sustentabilidade económica é mais importante do que o crescimento económico, porque hoje é preciso rever o modelo capitalista, não já à luz do marxismo, mas face à emergência ambiental.
Espero a defesa ativa do território: floresta e oceano.
Espero a defesa clara do Estado social: saúde, educação, Segurança Social. Habitação condigna para todos.
Desígnio cultural, local e cosmopolita.
O resto é gestão administrativa, boas práticas, boas contas.
No rescaldo das eleições, o dado mais preocupante é a conjugação de dois fatores, um diretamente relacionado com o resultado eleitoral e outro indiretamente relacionado mas determinante para uma parte desse resultado.
O primeiro tem que ver com o nível elevado de abstenção, com a reconfiguração da direita portuguesa e, sobretudo, com a eleição do deputado do Chega.
O segundo anunciou-se nas semanas que antecederam as eleições e ao qual, apesar de ser muito mais importante do que o caso de Tancos, quase ninguém ligou nenhuma: refiro-me à compra da Media Capital pelo grupo Cofina.
A conjugação destes dois fatores pode vir a ser no futuro próximo a maior ameaça à democracia portuguesa.
Sobretudo num contexto de indiferença, apatia ou fragilidade da restante imprensa - e de um sistema judicial não escrutável e por reformar, que tornarão a sociedade portuguesa cada vez mais vulnerável a ataques justicialistas, populistas e antidemocráticos.
Governar neste contexto vai ser mais difícil, não para este governo em particular, mas para qualquer um que fosse. Não pelo melhor motivo de haver um escrutínio do quarto poder, mas porque a pressão mediática vai no sentido de resumir a complexidade das circunstâncias a simplificações demagógicas, manipuladoras e populistas que podem reduzir o debate político ao pior tribalismo.
Temo que a discussão sobre as decisões de longo alcance venha a ser mais do que nunca prejudicada pela chicana diária das manchetes tabloides e dos registos virais não credibilizados como informação séria.
Em abstrato, o que espero de um governo e da sua liderança é que ele seja evidentemente dedicado à causa pública; que seja honesto, inteligente, imaginativo; que seja muito bom a negociar, a fazer acordos, a fazer pontes com todos; que tenha muito bom senso e muita perseverança; que saiba distinguir o essencial do acessório.
No concreto, que é o que nos interessa, o que esperamos é que esteja, como costuma dizer-se, à altura das circunstâncias.