Notícias da frente da guerra
Passaram cem anos do fim da Primeira Guerra Mundial. Foi a data do Armistício assinado entre os Aliados e o Império Alemão e do cessar-fogo na Frente Ocidental. As hostilidades continuaram ainda em outras regiões. Duas décadas depois, começava a Segunda Guerra Mundial, "um conflito militar global (...) Marcado por um número significativo de ataques contra civis, incluindo o Holocausto e a única vez em que armas nucleares foram utilizadas em combate, foi o conflito mais letal da história da humanidade, resultando entre 50 e mais de 70 milhões de mortes" (Wikipédia).
A guerra terminou com a vitória dos Aliados em 1945. Nesse ano foi fundada a ONU "para estimular a cooperação global e evitar futuros conflitos".
As guerras continuaram em outras regiões. Nós, portugueses, tivemos a nossa. Só terminou em 1974, nem passaram 50 anos ainda.
As guerras continuam. Continuam sempre. Noutras regiões geográficas, ou na cabeça dos que as combateram ou dos que as mitificaram. E nas paráfrases da guerra - que são a política, a economia, a distribuição da riqueza - a continuação da guerra por outros meios (parafraseando, de outro ponto de vista, Clausewitz).
Apesar de todos os conflitos regionais noutras partes do mundo, a Europa e o mundo ocidental viveram o maior período de paz e prosperidade nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial e até praticamente aos nossos dias.
Hoje não há uma guerra militar no território europeu e ocidental. Mas há uma outra guerra em curso. Os valores da liberdade, da democracia e da diversidade estão a ser ameaçados.
A nossa vida e os nossos direitos de cidadania ainda não estão em causa. Mas há um cerco. Fora das clareiras de paz das famílias, dos bairros, dos cafés, dos lugares de partilha - há uma ameaça crescente ao nosso estilo de vida europeu, multicultural e cosmopolita. E uma crescente infiltração no nosso espaço público de incitamentos ao separatismo, ao fanatismo e ao ódio.
"Uma vaga de extrema-direita autoritária, nacional-populista e fascizante, internacionalmente coesa e com um grau assinalável de coordenação, que está a tomar conta da política mundial", cito Rui Tavares, numa crónica recente intitulada "Abram os olhos: sobra a Europa", onde ele defende a defesa do projeto de união europeia que, com as suas imperfeições, é atualmente o último e único reduto com escala para fazer frente ao avanço do fascismo globalizado: "Se salvarmos o projeto europeu - e para o salvar temos de o melhorar e democratizar -, é da Europa que teremos capacidade de resistir e de, com esforço, virar o jogo e preparar a contraofensiva."
É uma guerra difusa contra inimigos dissimulados no espaço democrático. No meio de nós. Inimigos que, pelo medo, podem contaminar-nos, como um vírus que se propaga e a que ninguém é imune.
No filme They Live (Eles Vivem), de John Carpenter, de 1988, o protagonista encontra uns óculos escuros que lhe permitem ver a verdadeira face das pessoas com quem se cruza e detetar os alienígenas infiltrados, as suas mensagens subliminares e a sua conspiração para dominar os humanos. Sob a capa do género fantástico série B, o filme era uma sátira ao Reaganomics e ao princípio do Greed is good (Ganância é bom).
Foi nesse tempo (com Reagan e Thatcher) que se impulsionou o enfraquecimento dos mecanismos de regulação do capitalismo. O que viria a ser acelerado com a descolagem do setor financeiro da economia real e a desmaterialização global e circulação dos fluxos de capital que a internet veio possibilitar.
Este processo acabou por originar a crise de 2007-2008 e os seus efeitos, incluindo a errónea e tendenciosamente chamada "crise das dívidas soberanas", nomeadamente dos países da zona euro, permitindo intervenções políticas marcadamente ideológicas que visaram cortes nos benefícios sociais e objetivamente aumentaram a desigualdade.
Seria interessante no tempo atual um remake do Eles Vivem, talvez sob a forma de uma série ou de um jogo de computador, multimédia.
Os óculos escuros poderiam ser uma aplicação de óculos tridimensionais que permitissem ver os inimigos. A história, por mais piruetas que possa ter, continuaria tão simples quanto a outra: hoje, como nos anos 1980 (como sempre), os inimigos são os agentes das grandes corporações ou dos grandes Estados que com elas pactuam e que controlam o poder e a riqueza do mundo, seja a que preço for, fomentando as desigualdades (que vão ser ainda mais aceleradas pelo progressivo domínio da inteligência artificial) e destruindo o equilíbrio ambiental.
O objetivo do jogo seria despertar os cidadãos para a realidade (o que seria uma ironia, num jogo de computador) e fazer que eles reagissem e tomassem o poder. Para isso teriam de se libertar de todas armadilhas feitas para os distrair, da sociedade de consumo às religiões organizadas, ou outros sistemas de alienação coletiva como o futebol, as telenovelas, a manipulação noticiosa - ou os jogos de realidade imersiva.
Uma intriga simples como a de um jogo de computador. Só que, como se diz nessas ficções: "Isto não é ficção. É a realidade."
Na realidade, tal como na guerra, não pode haver nenhuma hesitação no combate político aos que ameaçam os pilares da nossa liberdade e democracia.
A arma é a educação. António Damásio lembrava, numa intervenção recente, que sem educação acabamos a matar-nos uns aos outros. E, a propósito precisamente dos discursos anti-imigração, dos nacionalismos xenófobos e da ascensão de partidos neonazis, dizia que "é preciso suplantar uma biologia muito forte" e que a forma de combater esses fenómenos "é educar maciçamente as pessoas para que aceitem os outros".
Precisamos que os programas escolares tragam com urgência este tema para a sala de aula: o ensino da cidadania livre, democrática e aberta ao outro, a todos - menos aos que ponham em causa esta forma de cidadania. Não é a escola sem partido. É a escola com todos os partidos, menos os que ameacem essa escola.
E precisamos de uma educação para os media. Para que todos os cidadãos tenham instrumentos para procurar a verdade e para desmontar qualquer tentativa de a iludir, adulterar ou manipular.
Nesta guerra todos devemos ser aliados: políticos e cidadãos. Na linha da frente, sem que isto seja paradoxal, artistas e jornalistas. São eles os óculos do filme.