Leonardo da Vinci e o rapaz do Mali que tinha boas notas
Leonardo da Vinci, "o arquétipo do homem do Renascimento, alguém cuja curiosidade insaciável era igualada apenas pela sua capacidade de invenção. É considerado um dos maiores pintores de todos os tempos e como possivelmente a pessoa dotada de talentos mais diversos a ter vivido".
A citação é da admirável Wikipédia, a enciclopédia livre, que nunca é demais louvarmos, "um projeto de enciclopédia colaborativa, universal e multilíngue estabelecido na internet sob o princípio wiki" e que "tem como propósito fornecer um conteúdo livre, objetivo e verificável, que todos possam editar e melhorar".
A simples descrição deste propósito e dos seus princípios fundadores é hoje um desígnio e um património a defender nos tempos de ameaças à procura do conhecimento e da verdade que hoje, como já não esperávamos, vivemos.
Assinalam-se os quinhentos anos da morte de Leonardo da Vinci celebrando tudo o que ele representa como exemplo máximo de polímato, indivíduo que estuda ou conhece muitas coisas, que tem um saber vasto e variado. Celebramos o homem renascentista, o homem-medida de todas as coisas, a experiência humana superando o dogma religioso.
Leonardo era um génio com uma multiplicidade de talentos, para as ciências e para as artes, e um homem com um extraordinário engenho criativo. É sobretudo conhecido como pintor, mas só "cerca de quinze de suas pinturas sobreviveram até aos dias de hoje; o número pequeno deve-se às suas experiências constantes - e frequentemente desastrosas - com novas técnicas, além da sua procrastinação crónica".
Registo e destaco este pormenor biográfico porque ele nos fala numa única frase do essencial: a inquietação artística ou não, a curiosidade e a experimentação constantes e obstinadas; o erro e a imperfeição comum a qualquer um; e a incerteza sobre o legado que fica, o que deixamos quando desaparecemos. Em suma, o que nos faz humanos.
Nunca mais houve um Leonardo, mas todos nós hoje nas sociedades contemporâneas globais mais desenvolvidas somos herdeiros deste espírito e deste modo de ser renascentista.
Lembro-me de no fim da minha adolescência, numa das inúmeras vezes em que me questionei sobre o caminho a seguir, me ter confrontado com "o jardim dos caminhos que se bifurcam" que é sempre a nossa vida.
Eu gostaria de ser argumentista de cinema e pensava que para o fazer da melhor maneira possível, para poder levar o mais longe que pudesse esse meu desejo e ambição, tinha de emigrar para os Estados Unidos da América, estudar argumento com os melhores professores e trabalhar lá com os melhores argumentistas de todo o mundo, ou seja, especializar-me. Essa opção implicava desistir de muitas outras possibilidades: de escrever outros géneros, de experimentar outras áreas artísticas, de ser diletante. E de viver em Lisboa, Portugal.
As opções não são compatíveis: ou tentamos ser o melhor possível numa área de trabalho e temos de nos focar completamente nessa especialização; ou optamos por uma vida mais diversa e aberta ao que não sabemos e podemos acabar por não ser muito bons a nada.
Esta foi a minha escolha. Não me arrependo. O mais certo, se tivesse optado pelo outro caminho, seria não ter conseguido aquilo que ambicionava. Mas não foi esse receio que me fez escolher, foi mesmo a convicção de que seria mais feliz a vaguear por aqui.
Ainda que possa sempre sonhar com a ideia de deixar uma qualquer coisa que seja para a posteridade global, não me desagrada nada ser um autor ou um artista regional. Afinal é o que somos todos, em maior ou menor escala.
Na melhor das hipóteses acrescentamos um ponto ao conto de que alguém se lembrará durante algum tempo.
Nesta semana li a história de um rapaz do Mali que queria chegar à Europa e morreu no mar Mediterrâneo num naufrágio em que morreram cerca de mil pessoas. O corpo do rapaz, um adolescente que não teria mais que 14 anos, esteve no fundo do mar durante quase um ano e o pouco que restava dele foi por fim resgatado. Com os restos do corpo vinha o que sobrava de um casaco onde estava cosido um documento de difícil leitura escrito em francês que dizia "Bulletin Scolaire(Boletim Escolar), que a equipa forense deduziu serem as notas escolares do rapaz, do qual não sabemos sequer o nome.Só as notas escolares, tudo o que tinha para provar o que valia quando chegasse à Europa."
Esta história, uma pequena história na história do mundo, diz mais sobre o nosso tempo do que mil gloriosas epopeias.
Quinhentos anos depois da morte, em França, do italiano, da região de Florença, Leonardo da Vinci, um dos homens mais notáveis de todos os tempos, ocorre-me, como uma rima distante, lembrar nesta crónica o rapaz do Mali, de quem nem sabemos o nome, que nunca será citado em nenhuma enciclopédia, para o qual não houve nenhum renascimento, o rapaz de quem tudo o que resta, resgatado do Mediterrâneo, a caminho da Europa, não é nem o corpo, mas só o desbotado vestígio de um sonho, um papel cosido ao forro de um casaco com umas quase apagadas notas escolares.