O primeiro beijo, o último beijo e depois

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Pequeno roteiro de canções, incluindo também referências a dois poemas e duas cenas de filmes.

Olhei-a nos olhos/ Sorriu para mim/ Pedi-lhe um beijo/ Lá lá lá lá lá/ Lá lá lá lá lá/ E ela disse que sim".

O beijo não está na canção, o beijo é o fim da canção, como nas histórias de amor que acabam felizes para sempre no momento em que o beijo começa.

O beijo é a rima que procura o desejo para se completar. Mais que o beijo, o que conta é o desejo de o procurar. É o desejo que conta e é o desejo que canta o sonho do beijo que é o desejo a desejar. O sonho do beijo é o princípio do desejar e não há melhor do que o beijo que se está quase a dar.

O que conta é o que se canta, são as histórias e as canções, o lalalá, a Lalaland em que dançamos na suspensão da incredulidade que é sempre o início de um romance. "Tocaram a rumba e dancei com ela e num passo maluco voamos na sala qual uma estrela riscando o céu e a malta gritou 'Aí Benjamim"".

A canção citada aqui e no início da crónica é O Namoro, a letra é de Viriato da Cruz, a música de Fausto. A primeira vez que a ouvi foi na versão cantada pelo Sérgio Godinho, na rádio, no final dos anos 1970. Estava quase na minha adolescência e sonhava como todos os rapazes e raparigas da minha idade com o primeiro beijo que não poderia tardar.

"Mandei-lhe uma carta em papel perfumado/ e com letra bonita eu disse ela tinha/ um sorriso luminoso tão triste e gaiato/ como o sol de novembro brincando de artista/ nas acácias floridas na fímbria do mar".

Não há início de canção mais bonito.

Hoje já ninguém manda cartas em papel perfumado e com letra bonita. O namoro como primeiro ato ou figura de estilo fundamental do romance, género amoroso em desuso, é substituído por formas contemporâneas de relacionamento de figurino mais instável, em contexto multimédia, porventura menos literário e mais performativo.

Mas temos as canções, continuamos a ter as canções, teremos sempre as canções. Como no filme, Casablanca, os amantes teriam sempre Paris, a memória do seu amor.

"Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso/ São bonitas, não importa/ São bonitas as canções/ Mesmo sendo errados os amantes/Seus amores serão bons".

Choro Bandido, este, de Chico Buarque, autor de memoráveis canções de amor do nosso tempo.

Escreveu a letra de Todo o Sentimento, uma canção sobre o fim do desejo, o outro lado do primeiro beijo. Aquilo que vai ficar quando se anuncia o fim da paixão, depois do último beijo apaixonado, quando o amor acabar.

"Prometo te querer / Até o amor cair / Doente, doente / Prefiro então partir / A tempo da gente / Se desenvencilhar da gente / Depois de te perder / Te encontro com certeza / Talvez num tempo de delicadeza / Onde não diremos nada / Nada aconteceu / Apenas seguirei como encantado / Ao lado teu".

Como se pode viver depois do fim do desejo? O que se faz de nós? Como nos desenvencilhamos? E como é possível que a pessoa que tão intensamente desejávamos não nos diga nada agora?

O primeiro livro de Eugénio de Andrade fechava com o poema Adeus, um dos seus poemas mais citados:

"Já gastámos as palavras pela rua, meu amor, / e o que nos ficou não chega (...)/ Já gastámos as palavras. / Quando agora digo: meu amor, / Já se não passa absolutamente nada".

Lembro-me como esse poema assombrou o meu primeiro amor de adolescente como uma profecia, uma maldição. Que acabou por se cumprir.
Jacques Brel cantava a Canção dos Velhos Amantes, ele que não chegou a ser um velho amante, e que morreu novo e cantou o amor tão intensamente:

"Il nous fallut bien du talent/ Pour être vieux sans être adultes", o talento para ser velho sem ser adulto.

Como se pode viver depois dessa adolescência que é sempre o desejo quando se acende? Como se fica quando "the thrill is gone", a excitação se vai?

Como se pode viver a vida de casal depois do desejo?

"If I close my eyes, if I fantasize/A movement that feigns desire/Can the perfect wife fake one more night/Can she joke and laugh and dance/ without the fire?" (Se eu fecho os olhos, se eu fantasio/ Um movimento que simula desejo/ Pode a perfeita esposa fingir mais uma noite/ Pode ela brincar e rir e dançar/ sem o fogo?), canta Patricia Barber em The Fire (O Fogo).

Resta-nos a todos a sabedoria para encontrar refúgio na solidão ou na partilha da solidão que são as amizades. Resta-nos nas famílias ou fora delas saber preservar os nossos amores.

"Amar/ é entristecer/ sem corrompermos/ nada", dizia Carlos de Oliveira, no (para mim) mais belo poema de amor da literatura portuguesa, Estrela.

Teremos sempre os poemas e as canções. Teremos, para seguir com as nossas vidas, as memórias dos beijos que demos e dos que sonhámos dar.

Elas estão connosco como uma velha bobina numa sala de cinema abandonada, onde, quando já não esperamos, pode voltar a ser projetada, como naquela última cena do maravilhoso Cinema Paraíso, de Giuseppe Tornatore, o mais belo filme sobre os beijos no cinema. Como Salvatore, Toto, descobrimos que os beijos que julgávamos perdidos para sempre no filme da nossa vida afinal não se perderam, nunca se perderam, estão sempre lá.

"Lá lá lá lá lá/ Lá lá lá lá lá/ E ela disse que sim".

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