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Se quisermos definir o que e a essência da banda desenhada, eu diria que ela esta na descontinuidade - nas imagens que faltam entre as imagens que existem. Como na vida, que e uma coleção de imagens descontínuas, o essencial e o que falta a unir essas imagens que contam a historia.
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Para mim, o gosto pelas histórias começou com as bandas desenhadas. As BD.

Primeiro foram os livros da Disney, na versão brasileira da editora Abril, distribuídos em Portugal nos anos 1960. Histórias aos quadradinhos. No Brasil diz-se quadrinhos, ou gibis (por causa de uma personagem, um moleque, que deu nome a uma revista muito popular lançada no final dos anos 1930).

Em Espanha são os tebeos (também por causa de uma revista que durou décadas, TBO), soa igual a te veo", vejo-te. Em Itália, fumetto, fuminho, por causa dos balões de fala das personagens. No Japão, as mangas, que são lidas no sentido contrário ao do Ocidente, "de trás para a frente".

E na cultura anglo-americana os comic books, os comics.

Em Portugal ficou a tradução do francês, banda desenhada, BD.

Nos meus anos 1960, depois dos Patinhas da Disney veio a Turma da Mónica, de Maurício de Sousa, o "Disney brasileiro".

No fim da infância comecei a ler o Mundo de Aventuras, editado pela Agência Portuguesa de Revistas, com as histórias a preto e branco do Fantasma, do Rip Kirby, do Garth (que viajava no tempo), do Flash Gordon e do meu favorito, Mandrake.

E também o Falcão, com as aventuras da líder da resistência francesa Mam'selle X, ou do heroico piloto luso-britânico (na tradução portuguesa, Estado Novo oblige) Major Jaime Eduardo de Cook e Alvega, o Major Alvega.

A paixão pela banda desenhada, a "nona arte", tem o seu esplendor por volta dos meus 11, 12, 13 anos, uma revolução paralela à revolução de Abril e ao PREC, o meu período bedéfilo em curso.

Havia um boom de publicação de revistas de banda desenhada em Portugal, com a novidade de serem no modelo franco-belga de histórias em continuação, à suivre.

Ainda antes de 74 tinha havido o Jacto, havia o Jornal do Cuto e, sobretudo, havia o Tintin.

O Tintin trazia o melhor da banda desenhada franco-belga, da revista Tintin belga e do francês Pilote. Saía todas as quintas-feiras, trinta e tal páginas de histórias em continuação, duas páginas cada semana (com dois Tintins Super por ano, com o dobro das páginas).

Foi lá que li pela primeira vez, antes de ler depois em álbum, o Astérix, o Lucky Luke (e tudo o mais do genial Goscinny), o Blake e Mortimer, o Bernard Prince, o Bruno Brazil, o Alix, o Valérian, o Martin Milan, o Luc Orient, o Olivier Rameau, o Jonathan, o The Spirit (nos Tintins Super), e muitíssimos mais. E o Tintin, claro. E o Corto Maltese.

Era um ritual, a espera pela continuação das histórias. A alegria das quintas-feiras, era passar depois da escola pela tabacaria da minha rua, onde o senhor Antunes tinha reservado o meu exemplar, correr para casa e lanchar (pão com Tulicreme) a ler de uma ponta à outra a revista dessa semana. À noite, antes de deitar, ler de novo, na cama, de seguida, as histórias do início, a partir dos números anteriores da revista.

Na escola (Manuel da Maia), depois no liceu (Pedro Nunes) discutíamos com fervor os nossos heróis e histórias favoritas.

Logo aos 11 anos organizei um clube de banda desenhada, o Clube Kósmikus, com os amigos da preparatória. Reuníamo-nos para trocar revistas e planeávamos um fanzine com histórias nossas. No liceu fizemos a Etc., um fanzine impuro, meio revista literária (só depois soubemos que afinal havia outra, a &etc).

Por essa altura, em 1975, foi lançada uma revista de banda desenhada portuguesa, um empreendimento coletivo, só com autores portugueses, a Visão. Uma pedrada visual e visionária num charco que nem sequer existia.

O grande dinamizador da banda desenhada em Portugal era o Vasco Granja, era ele o editor da revista Tintin (juntamente com o Dinis Machado, mal sabia eu que, nessa altura, ele estava a congeminar O Que Diz Molero, que viria a ser um dos livros da minha vida, e o Dinis, um querido amigo).

Eu bem queria ser autor de banda desenhada, argumentista (visto que para desenhador não tinha talento absolutamente nenhum).

Mas fiquei-me por meia dúzia de tentativas com o meu amigo Miguel Mallaguerra, desenhador, no Etc., o fanzine que não era bem fanzine.

Só na década de 1990 me estrearia por fim como argumentista a sério com o António Jorge Gonçalves como desenhador (que, curiosamente, eu tinha conhecido no final dos anos 1970 no Clube Português de Banda Desenhada). Foi no semanário Se7e, uma história em continuação, uma página por semana, a história chamava-se "Ana" e iniciava a série As Aventuras de Filipe Seems, da qual viemos a editar três álbuns.

Há certas coisas que demoram muito tempo a acontecer.

Nunca perdi completamente a ligação à banda desenhada, mas fui fazendo outras coisas noutras áreas de expressão.

Um dia, no início de 1996, recebo uma chamada inesperada. Era o António Mega Ferreira a contar-me que no âmbito da Expo'98 ia acontecer o Festival dos Cem Dias e a desafiar-me para escrever o guião para um musical de homenagem à banda desenhada. O convite era, claro, irrecusável.

A música seria do Pedro Abrunhosa. Lembro-me do entusiasmo que tínhamos os três nas primeiras reuniões a partilhar os nossos heróis e séries de BD favoritos (o Mega adorava o Mandrake, como eu; o Pedro também, mas preferia o Blake e Mortimer; eu o Philémon e o Corto Maltese). Era um entusiasmo juvenil, que eu sempre associei à banda desenhada, um regresso a um tempo de uma certa ingenuidade, uma disponibilidade para acreditar, uma desmedida "suspensão da incredulidade".

A peça veio a chamar-se O Rapaz de Papel (a versão que se estreou no Festival dos Cem Dias acabou por ser, por opção do encenador Juan Font, muito diferente da que eu escrevi. A peça que eu escrevi foi depois editada pela Cotovia, com o apoio da Bedeteca de Lisboa, ilustrada com desenhos do João Fazenda e diversos textos de muitas personalidades portuguesas sobre os heróis nela evocados).

Era a clássica história de um rapaz com um quotidiano banal e das suas aventuras sonhadas num mundo povoado de heróis e de aventuras.

Como Philémon (a maravilhosa personagem criado por Fred), que ele encontra perdido na ilha do A de oceano Atlântico e lhe diz: "... tens de pôr na cabeça que, numa ilha que não existe, tudo pode existir."

As bandas desenhadas são o sonho em papel dessas ilhas. Foi sempre esse contraste que me interessou nessa arte popular tão ao alcance de todos: as histórias com essas figurinhas desenhadas, sequências frágeis de papel que nos fazem sonhar sonhos maiores.

A vida é como as BD, somos todos frágeis figuras imaginadas, com as nossas luas de papel e os nossos corações e sonhos de papel.

Se quisermos definir o que é a essência da banda desenhada, eu diria que ela está na descontinuidade - nas imagens que faltam entre as imagens que existem.

Como na vida, que é uma coleção de imagens descontínuas, o essencial é o que falta a unir essas imagens que contam a história.

Hoje há as séries da indústria audiovisual, os jogos virtuais, a internet, toda a parafernália multimédia. O papel da banda desenhada, literalmente, já não é o que era.

O fascínio das histórias em imagens, porém, de uma ou de outra forma, permanece, hipnótico como nunca.

A elipse, suspensa entre uma e outra imagem. O fio da história que seguimos ou inventamos, como na vida.

E a curiosidade pelo que vem a seguir. O "e depois?", que enquanto houver vida, enquanto houver história, se remata, inconclusivamente, com a palavra: continua.

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