Cinema é o quê, hoje?

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Cinema é o quê, hoje? A definição de cinema, que no grego original quer dizer movimento, é ela própria uma definição em movimento.

Tal como a da televisão, que já não é só o que vemos no televisor - é o que vemos nos múltiplos ecrãs: os incontáveis canais lineares e os (cada vez mais) inumeráveis menus de visionamento a pedido. Televisão é toda a experiência audiovisual dos mais variados conteúdos com os mais diversos modos de produção, diretos ou gravados: notícias, desporto, magazines, concursos, desenhos animados, anúncios, documentários, reality shows, telenovelas, séries - incluindo filmes, cinema. Do lixo ao luxo, TV: total video.

A experiência televisiva tende a inscrever-se num universo mais amplo, que é o da internet. O visionamento pode tender a ser feito num contexto com componentes de hiperligação e interatividade ou de redes sociais, que não se esgota nas imagens em movimento, podendo incluir outras imagens, som ou texto. O ato de ver pode evoluir para uma experiência de navegação, interação ou imersão.

O cinema tem-se circunscrito à produção de imagens em movimento em formato com duração limitada, produzido para ser exibido em ecrã grande e desejavelmente, pelo menos numa primeira janela de exibição, em sala de projeção especializada.

O cinema no século xx confundia-se com o lugar onde passavam os filmes. Dizia-se (ainda se diz): "Vamos ao cinema" (como não se diz "vamos à televisão").

O cinema é um lugar. Lugar dessa liturgia profana que é o ato de nos sentarmos numa sala escura com um grupo de desconhecidos a ver uma sequência de luzes e sombras que nos contam histórias, nos inquietam, nos emocionam, nos abrem janelas ou alçapões para nos perdermos ou encontrarmos em lugares estranhos habitados por personagens evanescentes destinados a assombrar a nossa existência.

Tudo o que não seja esta experiência será sempre como ver um ritual na televisão, uma missa no intervalo dos anúncios.

Mas os caminhos do cinema são insondáveis. Ainda que se possa perder muito, não deixa de ser cinema quando o vemos num ecrã de telemóvel. Como se perde, sem deixar de ser cinema, quando é legendado ou dobrado noutra língua. Ou quando o vemos numa sala rodeados de sorvedouros de refrigerantes e mastigadores de pipocas, com ecrãs de telemóveis em permanente luminescência.

Não há formas puras de ver, há formas de ver com diferentes graus de impureza. A paixão pelo cinema tanto pode surgir num pequeno ecrã de uma televisão a preto e branco com o filme legendado interrompido com os comentários da família - como foi o meu caso com tantos clássicos que vi na RTP nos anos setenta da minha adolescência -, como numa projeção de província num lençol preso por molas num estendal ou num telemóvel de um jovem num qualquer comboio de subúrbio contemporâneo.

Discute-se muito no meio cinematográfico português o que é ou não é cinema, o que é cinema e o que é audiovisual, o que é arte ou indústria, o que é de autor e o que é mercado, se tem história ou não tem história.

São discussões completamente absurdas e inconsequentes, derivadas sobretudo da escassez de formas de financiamento e do afunilamento dos centros de decisão. Em Portugal este estrangulamento tem sido por demais evidente. São júris com enorme grau de aleatoriedade, ou por vezes compadrio com os candidatos, que decidem quem filma ou não filma, numa lotaria kafkiana que não dignifica ninguém e não estimula a existência de uma produção regular, múltipla e que não fique refém de todo o tipo de impasses.

Julgo que a situação só será ultrapassada com uma legislação que realmente fomente a diversidade e promova a obrigação de investimento de todos os agentes, nomeadamente a obrigatoriedade de investimento na produção local por parte dos grandes operadores multinacionais que aqui distribuem conteúdos.

Mas não chega. Talvez seja de observar o que aconteceu com a música, nomeadamente a música pop. Em Portugal, por exemplo, nunca a música pop foi tão diversificada e com tanta qualidade, nem tão internacional. Se é certo que hoje um músico vive principalmente dos concertos ao vivo e que para viver como músico tem de atuar em várias frentes, a verdade é que para todos os que ouvem música nunca a oferta foi tão ampla e estimulante.

A razão tem origem no facto de hoje qualquer músico ter a possibilidade de fazer a sua música e disponibilizá-la sem necessidade de decisores ou intermediários - e a partir dessa possibilidade ganhar outra capacidade de negociação.

A produção audiovisual é mais cara do que a produção musical, mas os preços dos equipamentos estão a descer e nunca foi tão fácil filmar ou gravar e disponibilizar o conteúdo.

Se é verdade que os cineastas não fazem concertos ao vivo, também é verdade que há cada vez mais festivais e programas de exibição com a presença de realizadores, atores e autores audiovisuais vários. Paradoxalmente, se calhar, é preciso recuperar o lado teatral da exibição de cinema. É preciso que se volte a usar a expressão "ir ao cinema" como um desejo e uma excitação que antecipamos; e "vir do cinema" como um encantamento partilhado com estranhos.

Tal como aconteceu com a música, o cinema precisa de se abrir em inúmeras direções formais e modos de produção que dinamitem as categorias estreitas em que tem vindo a ser asfixiado.

Não é só o facto de as séries terem vindo ocupar o lugar dos filmes como a forma mais prestigiada e popular de contar histórias com imagens. Hoje, o filme clássico de cinema está para a produção audiovisual contemporânea como o soneto está para a poesia.

A poesia das imagens em movimento está a entrar na época do seu verso livre.

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