Famílias
"Families and how to Survive Them" (Famílias e como Sobreviver-lhes) é o título do livro que John Cleese escreveu com o (seu) psiquiatra Robin Skinner e podia ser uma definição, um programa para a vida de cada pessoa. Philip Larkin já tinha escrito "They fuck you up, your mom and dad. /They may not mean to, but they do. / They fill you with the faults they had / And add some extra, just for you. / But they were fucked up in their turn / By fools in old-style hats and coats, / Who half the time were soppy-stern / And half at one another"s throats" (This Be the Verse).
Creio que não preciso de traduzir, julgo que o primeiro verso, que dá o tom, é esperanto universal.
As famílias podem ser lugares maravilhosos ou inescapáveis pesadelos. Ou as duas coisas ou nenhuma delas. Nascemos e crescemos (quase) todos no seio das famílias e delas temos de nos emancipar, libertar, partir para outra, quase sempre para outra família, sabendo sempre que a nossa família inicial (ou a sua ausência) permanece connosco até ao fim, bem ou mal.
Não escolhemos a nossa primeira família. Podemos escolher começar outra, logo que formos adultos, se não for antes.
E podemos escolhê-la de diferentes maneiras. Pode ser pelo amor. Pode ser pela paixão e pelo que se lhe sucede. Pode ser pela amizade.
Todas as relações são sempre uma elaboração sobre um acaso inicial. O acaso de termos encontrado outra pessoa. Se acreditarmos numa mística do acaso, ele é o nome profano do destino: "O destino é a inteligência secreta do acaso" (Paul Valéry).
Acaso ou destino, o encontro é o princípio do que vier a ser uma relação.
"A vida é a arte do encontro", dizia cantando Vinicius de Moraes no Samba da Bênção, acrescentando "Embora haja tanto desencontro pela vida".
É inacreditável como desperdiçamos tanto tempo das nossas vidas sem nos dedicarmos à arte de nos encontrarmos com os outros.
Sem procurarmos descobrir ou inventar o que podemos fazer dos encontros que nos acontecem. Daqueles encontros que nos deixam uma vaga ou uma muito concreta curiosidade ou inquietação. Que pode ser o princípio do pronunciar de um nome: o de um enamoramento, o de uma amizade, o de uma paixão, o de um amor.
Sempre imaginei que as relações entre as pessoas podiam ser descritas por um modelo de gravitação universal. Cheguei a escrever um ensaio teórico sobre o tema, uma teoria universal das relações pessoais.
"O nosso universo das amizades e dos amores, dos enamoramentos e das paixões, pode ser descrito como um sistema de planetas, luas, cometas, poeiras estelares, estrelas e buracos negros, objetos identificados e não identificados que giram à nossa volta.
A nossa relação com cada pessoa, mais próxima ou mais distante, é a procura e a criação de uma distância certa, de um equilíbrio. Se for muito próxima podemos chocar, se for muito distante podemos separar-nos para sempre...
Há planetas imensos e pequenos planetas, há a lua e há outras luas, há os amigos luas de outros amigos, há os cometas que passam e deixam um rasto brilhante..."
A família inscreve-se nesta cosmogonia como uma nebulosa onde gravitamos.
Há uma inegável poética na constatação desta constelação e da sua expansão que começa por termos origem numa família que não escolhemos e por podermos originar uma nova família a partir de uma pessoa que escolhemos e nos escolhe.
Podemos chamar, ou não, casamento a essa escolha. E poderá, ou não, haver contrato ou celebração.
O casamento é nas sociedades democráticas ocidentais, cada vez mais uma instituição aberta a todos os que o queiram celebrar. Independentemente do sexo, em plena igualdade de direitos. Felizmente.
Deve ser a abertura também o princípio para uma desejável cada vez mais regular prática da adoção com critérios que tenham que ver, não com preconceitos de género ou outro, mas com as possibilidades de felicidade que famílias em concreto possam proporcionar às crianças.
"Todas as famílias felizes são parecidas; as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira", escreveu Tolstói no Anna Karénina.
Só no final das histórias infantis, ou românticas (ou infantilmente românticas ou romanticamente infantis), se vive feliz para sempre. A vida acaba, mais cedo ou mais tarde, por ser uma forma de lidar com o sofrimento.
Uma família é - devia ser, podia ser - um primeiro abrigo ou última proteção para contrariar a dor e a solidão.
Uma família que nasça da liberdade e da vontade de ser família é sempre uma hipótese de felicidade que vale o risco de se parecer com outra qualquer família feliz.
Cabe à literatura dizer como as famílias felizes, apesar de parecerem iguais, são felizes cada uma à sua maneira.