Luísa Dacosta ou A Mecânica da Desistência
As figuras que têm desfilado por estas colunas, todas elas transcendentes já da glória do mundo, resvalaram muitas vezes para o esquecimento, e não raro apesar de festejadíssimas em vida. Ferreira de Castro por exemplo, com quem se iniciou esta secção, foi muito lido, traduzido em idiomas inúmeros, e até candidato ao Prémio Nobel, mas o seu nome mergulharia no ocaso que atesta a transitoriedade das coisas humanas. Deslindar o porquê de tal fenómeno, tentar deduzir as leis da sua verificação, e conformar-se com ele, ou rebelar-se contra o seu império, constitui objecto da Sociologia da Literatura e Leitura, disciplina que brilha pela ausência nos programas académicos.
Mas para além daquilo que a memória não reteria, ou que passageiramente deixaria de contemplar, por aqui deambularam uns quantos que, pese embora o seu mérito indiscutível, acabariam simplesmente colocados na beira do prato, mercê de circunstâncias porventura mais fáceis de averiguar. Luísa Dacosta, admirável cronista, experimentaria dolorosamente esse ostracismo, em grande parte resultado do seu afastamento, nem sequer assumido, das clics da capital. Outro galo talvez lhe cantasse, se as chamadas "novas tecnologias" surgissem a tempo de a dispensarem da presença física em lugares reputados de imprescindíveis, os quais decrescem hoje, e a olhos vistos, da importância que outrora lhes cabia.
Afecta a Irene Lisboa, cronista também, e por consequência incapaz, conforme ela própria declarava, de dar dinheiro a ganhar aos editores, Luísa Dacosta encontraria em José Régio, um igualmente provinciano, mas activo nas descidas ou subidas ao Chiado, uma espécie de paternidade literária que lhe alimentava a auto-estima, mas que de pouco lhe aproveitaria como motor promocional. E tudo iria redundar na inclinação para a desistência da prosadora de Vovó Ana, Bisavó Filomena e Eu, a qual confessaria amiúde o seu cansaço da tenacidade, e a consciência que a humilhava de andar a escrever para meia dúzia de amigos. A sua inscrição de resto numa geografia sentimental aparentemente pouco apelativa, a do litoral das cercanias da Póvoa de Varzim, contribuiria para o conhecimento menos alargado da sua obra, isto a despeito de as impressões da paisagem marítima e humana, aí colhidas por ela, se mostrarem apenas equiparáveis às que Raul Brandão testemunhara em luminosos textos sensoriais.
Talentosa narradora para a infância, Luísa Dacosta ficaria entre os agentes de ensino como uma pedagoga invulgar, cultivando critérios e propostas que se situavam na fronteira da criatividade nas letras, e da aprendizagem da língua portuguesa. Um dia, vigiando os exercícios de redacção dos seus pequenos alunos que abordavam um tema eterno, mas sempre modificável, a escritora repararia no trabalho de uma menina que se preparava para substituir a naturalíssima frase, "Estou morta por que cheguem as férias" pela que julgava mais elegante, e que seria, "Estou ansiosa por que cheguem as férias". De imediato a professora reagiria, ameaçando risonhamente a aplicada discípula, "Se te atreveres a isso, corto-te a mão!" E assim estatuía ela um magistério de frescura linguística, ao qual se revelam sensíveis tão-só os docentes de excepção.
Nos seus últimos anos o nosso diálogo dificultar-se-ia, em consequência da surdez que ela se esforçava por compensar com o aumento do volume da voz. Mas bastava para que nos entendêssemos o que se reflectia naquele olhar lindíssimo, a dança das ondas do Norte, a proporcionar-lhe o título de um inesquecível livro, A-Ver-o-Mar.