Eugénio de Andrade, Obscuro Domínio

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Quando me pedem um testemunho sintético do meu longo trato com Eugénio de Andrade, declaro invariavelmente, "Da minha parte foi sempre uma amizade grata e sincera, mas não incondicional." A súmula parece por vezes surpreender o interlocutor, porventura habituado a essas expressões mais calorosas, de fim de carta, nas quais o adjectivo "fraternal", ou a expressão "sem quebra", marcam presença. E explico então que semelhante reserva não contende com a firmeza, nem com a lealdade, do afecto, e muito menos com a estima literária que sempre dediquei ao poeta de As Mãos e os Frutos, e a quem me manteria tributário pela raríssima solidariedade com que me distinguiu.

Aparentemente avesso a toda a forma de vedetismo, Eugénio mobilizava para os seus efeitos, e sem pestanejar, os que se lhe encontravam mais próximos, afastando in limine o simples exercício do direito de lhe dizerem "não". Duvido de que possuísse plena consciência de tal dinâmica, e creio que apenas a determinação dos que "manipulava" conseguia paradoxalmente debelar o desconforto, e até a acrimónia, com que ele recebia qualquer negativa. Pertencia de facto a essa família humana em que medra a criança adorável que nos implora, a fazer biquinho, que lhe compremos um balão vermelho, e a quem a partir de certa altura, mas só para a consolar, acedemos a contragosto, e a senhora vetusta, mas elegante, que viaja connosco no mesmo compartimento do comboio, que nos sugere que a ajudemos com as malas, e a quem acabamos por acompanhar, carregados e às vénias, até ao táxi que ela toma às portas da estação.

Um diverso perfil de Eugénio de Andrade, e este porventura muito menos conhecido, reflectirá a imensa generosidade do homem que, quando não se irritava com a auto-suficiência dos medíocres, com as ânsias de amor das poetisas celibatárias, e com a bacoquice dos contadores de anedotas brejeiras, se dava como um príncipe aos cortesãos que em geral o não mereciam. Uma noite, e sem que coisa alguma o justificasse, mas por puro e gratuito impulso, abriria ele uma das suas muitas pastas, e oferecer-me-ia uns quantos desenhos de um artista incontestavelmente grande, e que seria oportuno que permanecesse mais amplamente representado na sua colecção.

A minha primeira memória do inventor de Mar de Setembro decorreria de uma remota madrugada do São João do Porto, e numa ocasião em que eu, mal saído da adolescência, integrava um grupo de festeiros a que ele, acompanhado por uma amiga, se juntaria. Derivámos para o restaurante onde prestaríamos as honras ao cabrito da tradição, e logo ali se me revelaria aquele sujeito singular. Assumindo como era de sua natureza o absoluto protagonismo, Eugénio fascinar-nos-ia com o seu monólogo, citando os versos de um colega lírico, algo mais velho, e muito mais célebre do que ele, que a si próprio se caracterizava como "honrado poeta sinaleiro". "O poeta", indignar-se-ia o nosso conviva, "não é honrado, nem desonrado, é poeta, e isso de o identificar com um polícia só poderá equivaler a um insulto."

Numa caixa de previdência da segunda cidade do país, e muito mais tarde, estabeleceria eu com Eugénio de Andrade, posto que por entre as usuais suspensões, características das amizades maiores, o diálogo a que unicamente a morte colocaria ponto final. O jovem chefe de secção que o subscritor destas linhas encarnava, e o inspector que Eugénio continuava a prefigurar, cruzar-se-iam no terreno comum da literatura. E a ele ficaria eu a dever o apadrinhamento do meu trabalho de estreia na novelística, Um Verão Assim, e a partilha de uma rede de relações a que sem a sua mediação jamais acederia. Reuníamo-nos com frequência, ora no seu minúsculo apartamento da Rua Duque de Palmela, ora no café que se lhe situava defronte, e enveredávamos por confidências mútuas, e por recíprocas trocas de impressões, a contemplar Portugal e o mundo, quando não as glórias e misérias da vida das letras de todo o tempo e lugar.

O cinzelador de Homenagens e outros Epitáfios morreria como é legítimo que se morra, na expectativa de que lhe respeitassem a vontade atinente ao destino do seu rasto. Mas nunca como nessa conjuntura haveria de cobrar o substantivo "espólio" mais terrível e sinistra conotação, viajando de Herodes para Pilatos, e indo parar onde o seu proprietário não desejava que se quedasse. A fundação que sonhara, e que criara com desvelo, dissolver-se-ia quase imediatamente ao seu falecimento, e por razões que não vêm ao caso, mas que alimentariam diversas crónicas, mais extensas, e mais tristes, do que a que segue aqui. Bastará aduzir que a consuetudinária ganância dos exploradores de cadáveres, e a correlativa obsessão de que reparem neles os que não dispõem de títulos autónomos para se erguerem de pé, resultariam no espectáculo que nos magoa, e que perdura despudoradamente à vista, do prédio onde Eugénio de Andrade passou os seus últimos anos, e que ali está, gelado e sem serventia como é de lusa praxe, e diante das marés-vivas que melhor fora que o levassem para os abismos do Atlântico.

Ninguém ousará entretanto assegurar que o autor de Até Amanhã, hirto no caixão onde o meteram, de pijama, aí conforme ao que tinha requerido, e como realmente se achava no momento em que expirou, não teime em inculcar através do silêncio, e "sílaba a sílaba", o seu "obscuro domínio".

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