Provocar mais sofrimento inútil
1- Na segunda-feira, dia 8 de janeiro, alguns jornais, como o Público em Portugal, noticiavam que a administração Trump decidiu colocar sob ameaça de deportação 200 mil salvadorenhos. Milhares de famílias, milhares de crianças que, desde 2001, ou em alguns casos antes disso, residiam nos EUA, maioritariamente ao abrigo de um estatuto especial atribuído na sequência da devastação provocada pelo grande terramoto que naquele ano devastou São Salvador, foram agora alvo de uma decisão aparentemente absurda. Absurda porque não resultou de um qualquer problema colocado pelas pessoas agora ameaçadas de deportação, hoje mais americanas do que salvadorenhas, sobretudo no caso das crianças que cresceram nos EUA como americanos. Porquê?
2- Já antes, no início de dezembro último, Trump tinha decidido, unilateralmente, mudar a embaixada norte-americana em Israel de Telavive para Jerusalém, aumentando, assim, os riscos de insegurança e instabilidade na região, reacendendo ódios e provocando novos protestos e conflitos violentos. Fê-lo sem que nada ou ninguém o tivesse solicitado e sem qualquer preocupação em articular a sua decisão com os aliados dos EUA, com os países da região, com as organizações internacionais ou com os processos de negociação entre israelitas e palestinianos. Porquê?
3- Há muitas decisões da administração Trump que são objeto de discórdia generalizada. Por exemplo, as políticas que promove em domínios como os das alterações climáticas ou de regularização dos fluxos migratórios, as medidas protecionistas e de fechamento da economia americana que defende, pelo menos no plano da retórica, a sua contrarreforma fiscal ou as tentativas de desmantelamento do incipiente sistema público de saúde norte-americano criado por Obama. Podemos discordar de todas estas políticas, mas compreender, ao mesmo tempo, a sua racionalidade, o seu sentido: proteção de interesses particulares, transferência de recursos para os mais ricos, concentração do poder económico e alteração de equilíbrios com uma longa história na sociedade norte americana, diminuição dos poderes de regulação e de redistribuição do estado. Podemos discordar, mas compreender, ao mesmo tempo, a visão do mundo que as sustentam e os interesses que servem.
4- Porém, as duas decisões da administração Trump que referi de início, de deportação de milhares de famílias salvadorenhas e de transferência da embaixada para Jerusalém, são de uma outra natureza e colocam Trump no patamar da política mais radical de afirmação de uma ideologia independentemente das suas consequências para terceiros. São medidas de política que visam uma exibição despudorada de poder e que têm como principal consequência infligir sofrimento inútil a milhares de seres humanos. E infligir sofrimento inútil é, verdadeiramente, o contrário do que a política deveria ser. Os políticos não são todos iguais e as políticas não são todas da mesma natureza. E a primeira diferença entre elas não é serem de esquerda ou de direita, é serem políticas decentes, que procuram resolver problemas, remover sofrimento e melhorar a vida das pessoas, mesmo que de modos controversos ou beneficiando mais uns do que outros. Diferentes de políticas cruéis de afirmação de um ponto de vista particular ainda que à custa do agravamento do sofrimento humano.
5- Em 2005, o ex-primeiro-ministro espanhol Zapatero, num discurso simples mas notável com que apresentou aos deputados a proposta de alteração do Código Civil para remover os obstáculos ao casamento entre homossexuais, dizia que "esta lei não produzirá mal algum, [] a sua única consequência será livrar seres humanos de sofrimento inútil. E uma sociedade que livra os seus membros de sofrimento inútil é uma sociedade melhor". Em 2011, Fernando Henrique Cardoso, nas suas Cartas a um Jovem Político, afirmava serenamente: "O que posso dizer a um jovem desejoso de ser político, se tivesse de resumir numa única frase o mais elevado propósito da vida pública, seria simplesmente o seguinte: só entre na política para tentar mudar as coisas para melhor. Sonhe que será possível, mas não se perca no sonho: ajude a construir um caminho que permita fazer que a vida das pessoas melhore."
6- Há muitas formas de conceber a felicidade, há muitas visões do que é ou pode ser a sociedade ideal, mas, para lá dos esforços políticos que possamos fazer na concretização de um ideal baseado nas nossas convicções, é mais importante que a política comece por se preocupar com o objetivo de eliminar o sofrimento inútil. Ou, pelo menos, em não provocar mais sofrimento inútil. Discordemos sobre a diversidade de modos de conceber a felicidade, mas concentremo-nos em eliminar o que de comum há na miséria humana.