O regresso do obscurantismo

Publicado a
Atualizado a

1. Ainda imersos na tragédia dos fogos que deixaram o país mais pobre e puseram a descoberto problemas profundos de desigualdade territorial, cai-nos em cima a notícia de uma decisão judicial que nos vem recordar outras debilidades. Apesar de todas as mudanças construídas e consolidadas nos últimos 40 anos, o passado espreita pela mais pequena brecha. O já muito citado acórdão da Relação do Porto sobre o caso de violência de dois homens sobre uma mulher não passará com a espuma dos dias. Ou melhor, é importante que não passe com a espuma dos dias. Ter sido possível um acórdão que invoca a Bíblia para justificar a violência sobre as mulheres é revelador, de forma dramática, tanto do funcionamento da justiça como do estado dos direitos das mulheres em Portugal.

2. Sobre o funcionamento da justiça ficámos a saber que pelo menos aqueles dois juízes, Neto Moura e Maria Luísa Arantes (vale a pena referir os seus nomes porque isso contribui para evitar generalizações abusivas) fizeram carreira produzindo sentenças inspiradas em códigos que não existem, baseadas em preconceitos pessoais e numa visão retrógrada do mundo. O conhecimento jurídico e a informação parecem ser, para eles, irrelevantes, dispensáveis. Ora, isto só é possível porque, no nosso país, as decisões judiciais raramente são escrutinadas, raramente são acessíveis ao cidadão comum. Por um lado, porque não há uma política clara e exigente de divulgação pública dessas decisões, mas também porque as sentenças, tal como os relatórios de acusação ou os recursos de defesa, são em regra constituídas por centenas de pastas, com milhares de páginas. Muitas páginas e muita prosa são tidas como sinal da qualidade da decisão.

3. A opacidade das decisões judiciais favorece más práticas. Pelo contrário, o conhecimento, a informação e o debate livre e plural são a chave para um funcionamento mais transparente da justiça. A divulgação sistemática e organizada do conteúdo das sentenças, tornando-as acessíveis de facto, é muito importante para o escrutínio e o debate público sobre as decisões do poder judicial, como aliás se comprovou neste caso. A divulgação dos termos do acórdão pelos meios de comunicação e a denúncia pública dos fundamentos da sentença geraram um conjunto de iniciativas e debates, de tomadas de posição que são, certamente, o primeiro passo para uma reflexão sobre o que é necessário fazer para que não ocorram situações semelhantes.

4. Por outro lado, o acórdão revelou o muito que há ainda a fazer no domínio dos direitos das mulheres e da igualdade de género. Não há muitos meses, a propósito de lamentáveis episódios de cadernos azuis e cor-de-rosa, ou do alargamento da participação e da presença das mulheres nos espaços públicos e de decisão, houve quem viesse invocar os excessos do politicamente correto e argumentar sobre a irrelevância destes problemas. Pois bem, aí está a demonstração simples e chocante de que a naturalização da reduzida presença das mulheres em lugares de decisão facilita a aceitação de visões antigas sobre o seu lugar subalterno em todos os domínios.

5. A reação obscurantista contra as mulheres e a leitura fundamentalista dos textos religiosos não são, porém, episódios isolados num país ainda atrasado como Portugal. Nas últimas semanas, Donald Trump reduziu o acesso a meios contracetivos pelas mulheres americanas, oferecendo uma vitória à sua base eleitoral na direita evangélica num domínio que afeta particularmente as mulheres. Na Europa, o fundamentalismo cristão fez prova de vida no mais improvável dos lugares, o Reino Unido. Ainda sem a gravidade dos ataques aos princípios da igualdade, mas nada prenunciando de bom. A história conta-se em poucas palavras. Em Londres, um grupo cristão evangélico da igreja da Santa Trindade de Brompton tem vindo a tomar o controlo de várias paróquias onde, entre outras mudanças, passou a proibir a utilização das igrejas para concertos de música (clássica) profana. A última conquista do grupo foi a igreja de St. Sepulchre-without-Newgate, em Holborn, também conhecida como a Igreja Nacional dos Músicos...

6. Na Europa como nos EUA, estes assomos obscurantistas dão-se numa conjuntura cada vez mais favorável dominada pelo crescimento da direita nacionalista e populista, no poder na Polónia e na Hungria, em vias de a ele acederem na Áustria ou na República Checa, sem falar na entrada no Parlamento alemão. Porém, podem ser derrotados, mesmo no contexto mais desfavorável, como é bem ilustrado pelo que aconteceu na Polónia, país onde, há cerca de um ano, milhões de mulheres reagiram e enterraram um projeto de lei de proibição total do aborto.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt