Descobertas ou colonialismo?

1- A proposta de criação de um museu das descobertas tem gerado debate apaixonado opondo os que a defendem, em nome da celebração da identidade nacional, e os que a contestam, em nome da crítica ao colonialismo português. Celebrar a identidade nacional e criticar o colonialismo não têm, porém, de ser objetivos contraditórios entre si.

2- Todas as nações são constituídas em torno de narrativas identitárias que têm como momento-chave um mito sobre a sua idade de ouro. Nessa idade de ouro a nação foi grande, mesmo que hoje o seja menos, o que permite constituir o sentimento de pertença nacional como sentimento de orgulho coletivo. Não é possível eliminar aquele mito sem eliminar a própria ideia de nação.

3- O mito é isso mesmo, um mito. Ou seja, uma história que evolui com a história, em permanente atualização. Não sendo essa história arbitrária, ela varia em função do modo como são selecionados, destacados ou ignorados as componentes da narrativa em causa. Por exemplo, no caso português, a referência às descobertas como momento-chave da narrativa identitária nacional pode incluir, como no passado, a referência ao papel de Portugal na chamada evangelização e civilização de outros povos, ou seja, ao colonialismo visto com lentes cor-de--rosa, ou centrar-se na celebração da aventura, da inovação e da mundialização. A primeira narrativa dificilmente será compatível com um Portugal mais cosmopolita e capaz de criar um sentimento de pertença inclusivo, mas a segunda não só pode ser compatível com um Portugal moderno como é legítima.

4- Em contrapartida, a história do colonialismo e da escravatura, que deve ser conhecida e assinalada, não é, também, por razões simétricas, uma narrativa identitária inclusiva, nem a base de um sentimento de pertença coletiva viável. Ninguém nem nenhuma coletividade humana se identifica com orgulho com uma história de culpa e de autoflagelação. Faz sentido dar a conhecer o colonialismo, assinalar os traços negros do passado humano e celebrar os povos sobre os quais foram exercidos os poderes coloniais e a escravatura. Mas não em substituição de uma narrativa identitária construída em torno da epopeia (depurada) das descobertas.

5- Um museu das descobertas, centrado no que pode ser hoje objeto de orgulho coletivo partilhado numa sociedade mais heterogénea, faz sentido e pode ser um modo eficaz de reconstrução progressiva da narrativa identitária nacional em moldes mobilizadores e mais inclusivos. Pelo contrário, a recusa do projeto apenas servirá para manter viva a narrativa clássica impregnada com visões chauvinistas e coloniais que promovem o preconceito e naturalizam a discriminação. Devíamos estar mais concentrados em discutir com cuidado o que deveria constar do futuro museu do que na missão impossível de substituir a celebração do orgulho nacional pela culpa do passado histórico.

6- Posto isto, faz também sentido um museu do colonialismo e da escravatura. Não para julgar o passado com base nos critérios morais do presente ou para julgar o presente com base em feitos passados. Mas para repor a verdade da história, assinalar a vontade de não lhe dar continuidade no que ela teve de mais sombrio e de prestar homenagem a quem com ela mais sofreu. No passado. Ou seja, fazer um museu do colonialismo e da escravatura não com objetivos de celebração, mas de explicação e de reconhecimento. Um museu que seja também um memorial.

7- Em resumo, não vejo razões para ter de escolher. Em debate não deveriam estar iniciativas alternativas, e portanto um confronto, mas iniciativas paralelas com objetivos distintos. No conjunto devem permitir uma visão mais informada sobre a história nacional, sem prejuízo da celebração do passado que nos constitui como coletividade. Precisamos de uma narrativa identitária mais inclusiva. Pensar que é possível prescindir dessa narrativa sem mais é não só missão impossível como um ato com consequências perversas, ou seja, do qual poderá resultar, por reação alargada, o exato oposto do que se pretendia atingir.

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