Quem ganha Istambul ganha a Turquia. Será mesmo?

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É o princípio do fim de Recep Erdogan, opinam muitos, apressadamente, sobretudo fora da Turquia, olhando para a conquista de Ancara e Istambul pelos candidatos da oposição nas eleições locais de 31 de março. Os mais bem informados até fazem comparações com as eleições de 1994, que viram a capital da república e a antiga capital imperial otomana serem ganhas por candidatos do campo islamo-conservador, no segundo caso o próprio Erdogan, prenunciando o advento do AKP ao poder em 2002 (depois de um efémero governo em 1996-1997 do Refah, de Necmettin Erbakan, o patrono do atual presidente turco). Ou seja, preveem já um regresso em força dos políticos laicos, nomeadamente os do CHP, o partido de Mustafa Kemal Atatürk, fundador da república em 1923.

Os números, de facto, dão conta da vitória da oposição em cinco das seis maiores cidades do país, assim como a conquista de províncias um pouco por todo o território e não só na costa do Egeu, o seu tradicional bastião nestas duas décadas de hegemonia do AKP. Conta muito nesta exagerada leitura catastrofista para Erdogan também o velho adágio de que quem ganha Istambul ganha a Turquia. Contudo, os mesmos números oficiais comprovam o AKP como o maior partido de longe (44%,suficiente para a sua 15.ª vitória consecutiva) e dão à aliança que tem com os nacionalistas do MHP mais de 50% dos votos. E até Istambul pode ainda ficar nas mãos dos islamo-conservadores se a recontagem pedida inverter a vantagem mínima do candidato do CHP.

Tentemos, agora, olhar com certa frieza para o que sucedeu e que consequências pode trazer para um país euro-asiático eterno candidato à União Europeia, membro da NATO e parte do G20, o grupo das maiores economias mundiais.

Os recentes problemas económicos abalaram a popularidade do presidente a um ponto como não o fizeram nem as desaventuras geopolíticas nem a repressão interna após o golpe falhado de 2106. É de crer que o regresso da inflação e do desemprego tenha afastado eleitores do AKP, sobretudo nos meios urbanos. Ao mesmo tempo fica evidente que, tal como aconteceu no referendo sobre os poderes presidenciais e nas eleições para a chefia do Estado, a força do AKP depende bastante da capacidade de preservar a aliança com o MHP, o que não é certo. E o agravar da situação económica, desfazendo a fama (justa) de Erdogan como promotor do desenvolvimento, pode abalar a sério o AKP.

Por outro lado, Erdogan tem em teoria até 2023, data das próximas eleições, para tentar corrigir o que está mal na economia. A seu favor está uma capacidade invejável para dar a volta a situações complicadas, seja o golpe militar pró-Gülen, seja a ameaça das milícias curdas vinda da Síria, só para dar dois exemplos recentes. E sabe-se ser enorme a sua vontade de estar à frente de uma Turquia de sucesso quando se celebrar o centenário do país fundado por Atatürk a partir das cinzas do Império Otomano.

Última ilação: dividida entre laicos, na linha de Atatürk, e defensores de maior ligação ao islão, como quer Erdogan, a sociedade turca continua a mostrar, num contexto regional difícil, uma vitalidade democrática que só pode deixar otimista quem admira o país.

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