Génio italiano e generosidade americana

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Famoso por ter a mais rica coleção de arte japonesa fora do Japão, o Museum of Fine Arts de Boston exibe nas próximas semanas a mais completa exposição de Botticelli que os Estados Unidos já viram. O génio italiano surge aqui em todo o esplendor através de pinturas emprestadas pela sua pátria, mas também graças a obras dos museus da própria cidade, como o que tem o nome de Isabella Stewart Gardner, aqui ao lado, ou o de Harvard, na margem norte do rio Charles. Como se pode ler num dos textos que acompanham a exposição, é antiga a paixão dos bostonianos pelo pintor Florentino.

Paixão pela arte na Itália do Renascimento queria dizer generosidade, como a desse Lourenço de Medicis que no final do século XV financiava Boticelli, dando-lhe liberdade criativa e poupando-o às preocupações da sobrevivência. Na América contemporânea, paixão pela arte continua a ser sinónimo de generosidade. Depois de entrar no edifício neoclássico do Museum of Fine Arts (traduzível por Museu de Belas Artes), segue-se as setas até à sala dedicada a Botticelli e antes de passar as portas de vidro uma placa anuncia os patrocinadores, incluindo o jornal Boston Globe. Mas o que salta à vista é a condição de anonimato que foi pedida pelo principal financiador de uma exposição que se adivinha de custos milionários, mais não seja pelo preço dos seguros de viagem dos quadros emprestados pela República Italiana.

Diz-se que a força da filantropia nos Estados Unidos tem muito que ver com o protestantismo, com essa necessidade de agradecer os favores divinos e devolver à sociedade parte do sucesso que permitiu ao indivíduo que enriqueceu. Sabendo que os Peregrinos do Mayflower desembarcaram nesta costa há 400 anos faz todo o sentido então a pujança dos museus de Boston e arredores. Mas com tantos católicos também a aqui se fixarem aos longo dos séculos, como o clã Kennedy, não me parece que a filantropia hoje se possa dizer que é um fenómeno protestante, mas sim que é uma característica americana, no passado com os Rockefeller ou os Mellon, hoje com Bill Gates.

Voltando a Botticelli, cujo verdadeiro nome era Alessandro di Mariano di Vanni Filipepi, mas ficou imortalizado como "pequeno tonel", é um verdadeiro prazer passear entre os seus quadros, que incluem até uma Vênus vinda de Turim, além de várias pinturas da Ufizzi, em Florença. Tem piada e é antiga esta mania dos italianos de darem alcunhas que se agarram às pessoas famosas. Lembro-me assim de repente que o imperador Caio Júlio César Augusto Germânico ficou na história como Caligula, "o botinhas", que é como lhe chamavam os legionários quando ainda criança visitava com o pai as tropas romanas e ninguém imaginava a crueldade nele oculta. No caso de Botticelli a alcunha era do irmão Giovanni mas agarrou-se.

Lourenço de Medicis, chamado de o Magnífico, morreu em 1492, o ano em que Colombo descobriu a América e ganhou lugar no triuvirato com Vasco da Gama e Fernão de Magalhães que abriu o mundo à modernidade. Mas em Florença o padre Savonarola ia em sentido contrário dos tempos e impôs tal medo a todos que até Boticelli mudou das Vênus para as imagens bíblicas, como a que ilustra esta crónica e pertence ao Museum of Fine Arts, cuja sigla MFA não tem aqui a ressonância revolucionária óbvia em Portugal.

Por falar em revolução, e já agora em reação também, se há sítio onde os Savonarolas do século XXI não tem hipótese nenhuma é neste Massachusetts do qual Boston é a capital. Tanta universidade de topo à sua volta, de Harvard ao MIT e à UMass, garante que o MFA terá sempre massa cinzenta a visitá-lo e muita massa da outra a financia-lo. Magnífico, é o mínimo.

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