Mistificações e rigor no debate sobre a despenalização da eutanásia

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Graças à iniciativa do Movimento Cívico pelo Direito a Morrer com Dignidade, o país tem vindo a fazer um debate intenso sobre que escolhas devem poder fazer as pessoas em fim de vida. Sendo a todos nós reconhecido o direito de fazermos com autonomia as escolhas essenciais ao longo da nossa vida, podemos ser privados desse direito de escolher no momento em que a vida finda? Essa discussão tem vindo igualmente a ter lugar no Parlamento. A apresentação de projetos de lei sobre a despenalização da eutanásia teve o enorme mérito de acrescentar ao debate teórico sobre princípios gerais um outro sobre soluções concretas. Será sobre essas soluções concretas - e não sobre questões abstratas - que será tomada uma decisão. Porque o debate faz-se não para debater mas para decidir.

Os opositores à despenalização da morte assistida têm trazido para este debate alguns argumentos que mistificam a realidade. São fundamentalmente quatro essas mistificações.

A primeira é a de que, havendo despenalização da eutanásia, virá aí uma vaga de eutanásias involuntárias, de eutanásias de crianças, de eutanásias de doentes mentais, de eutanásias por motivos fúteis. É o conhecido argumento da rampa deslizante: começado o caminho, a descida é imparável. É o argumento do medo: o receio de descontrolo deveria impedir a despenalização, mantendo tudo como está. Sejamos, porém, claros: em todos os projetos de lei até agora apresentados, a eutanásia involuntária, a eutanásia de crianças, a eutanásia de doentes mentais ou a eutanásia por motivos fúteis são pura e simplesmente crimes. Porque todas essas situações são claramente excluídas do elenco de casos em que os projetos admitem despenalização.

Mas mais. Dizem os adversários da despenalização que o problema não é a lei presente, é o que vem a seguir. "Aprendamos com a experiência dos outros países", dizem-nos. Pois bem: a experiência dos outros deve ser um fator de paralisia ou deve levar-nos a dotar a lei de todos os elementos de rigor possíveis? Opto claramente pela segunda hipótese porque não me demito das minhas responsabilidades num Estado de direito democrático.

A segunda mistificação é a de que quem decide são os médicos e não a pessoa que está em sofrimento. Nada mais falso. Despenalizar a eutanásia implica definir requisitos muito estritos para a sua prática. E, sendo esses requisitos de ordem clínica, impõe-se que a respetiva verificação seja aferida por quem tem competências científicas e técnicas para tal. Conhecem alguém mais bem preparado do que um médico para assegurar que alguém tem uma doença incurável e fatal? Conhecem alguém mais bem preparado para assegurar que essa doença causa a essa pessoa um sofrimento insuportável? Eu não conheço. Mas sejamos sérios: uma coisa é avaliar a condição de alguém, outra coisa é decidir. Quem decide é sempre e só a pessoa doente e em sofrimento atroz.

A terceira mistificação é a de que a despenalização viola o preceito constitucional que afirma a inviolabilidade da vida humana. Temos o direito à vida e o Estado tem a obrigação de o respeitar e proteger. Mas é óbvio que esse dever de proteção não legitima tudo. Sobretudo não legitima a transformação do direito à vida na obrigação de viver. A inviolabilidade da vida humana impõe, naturalmente, a proibição inequívoca da privação da vida por terceiros contra a vontade do próprio. É por isso que o homicídio é crime e é por isso que a pena de morte é proibida e deve ser. Mas, tratando-se do ato de provocar ou ajudar a morte de alguém a seu pedido - e sendo este pedido consciente, lúcido e reiterado -, tem o Estado o direito de negar que esse pedido se cumpra, criminalizando o profissional de saúde que entenda dever corresponder-lhe? Tem o Estado o direito de, dessa forma, impor a quem, em condição de agonia irreversível, pede para morrer que prossiga numa vida biológica indigna aos seus próprios olhos? Uma tal imposição é contrária ao que se espera de um Estado de direito democrático como aquele que a Constituição felizmente consagra.

Finalmente, uma quarta mistificação é a de que a despenalização da eutanásia hierarquiza as mortes: são dignas as que são controladas pelo próprio, são indignas as que o não são. Pura mistificação. A lei vigente, essa sim, consagra uma hierarquia clara. Tão clara que condena a prisão o médico que aceitar respeitar a vontade do doente de antecipar a morte. O que a despenalização da eutanásia permitirá é justamente uma não hierarquização: é tão digno de absoluto respeito quem escolhe um fim de vida em sofrimento, como quem escolhe um fim de vida paliativamente adormecido, como quem escolhe antecipar a sua morte para que o fim da sua vida seja de acordo com os patamares de dignidade que se impôs a si mesmo ao longo de toda a vida.

A despenalização da eutanásia acrescentará tolerância à nossa lei e à nossa sociedade. Ao contrário do que acontece hoje, ninguém será obrigado a enveredar por um fim de vida que não quer. A despenalização da eutanásia é um gesto de respeito por todos.

O DN está a publicar neste espaço de opinião um debate sobre a eutanásia, dando a palavra aos partidos representados na Assembleia da República.

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