Terça-feira, 1 de Novembro.Este ano levei a cabo uma experiência: em vez de correr a abrir a porta oitenta vezes ao longo da manhã, enfaixei o sino com papel de jornal e fui pendurar uma saca cheia de bombons no portão da frente, com um letreiro: "Uma mãozinha de rebuçados a cada um. E feliz Pão-por-Deus!".O problema não se colocaria se se tratasse de um daqueles anos sem feriado a 1 de Novembro, caso em que os miúdos viriam no fim-de-semana, ou se eu e a Catarina trabalhássemos noutra coisa. Em anos assim, e vistas estas profissões, é feriado para toda a gente menos para nós, e o desassossego das últimas semanas exigia que trabalhássemos esta manhã..Desconfiada, a Catarina viu-me atestar a saca que há uns meses a Clara nos mandara com biscoitos e, percebendo a minha intenção, desalentou-se:.- A saquinha da senhora... Logo a mais bonita! Ao meio-dia já desapareceu..Lamentei a sua falta de entusiasmo. Mas o Pão-por-Deus significa para mim uma coisa que não significa para ela. Para mim, o Pão-por-Deus tornou-se um símbolo da resistência ao Halloween e (sim, ocorrem-me de facto estas palavras) ao imperialismo cultural anglo-saxónico..Ademais, é uma bonita memória da minha infância, o Pão-por-Deus. Sinto a obrigação de preservá-lo..De maneira que deixámos a saca pendurada e fomos passear os cães..Quando regressámos, o Fernando, que tem 22 anos, estava na paragem da urbana..- No meu tempo, essa saca já não estava aí - riu-se..Pensei: "No meu, se calhar, também não." Mas disse apenas:.- Não tiraram quase nada, os miúdos....E ele:.- Devem estar desconfiados. Hão-de pensar que vão a tirar um rebuçado e levam com um balde de água..Sorri, com a convicção possível, mas decidi manter lá os bombons. E só quando acabei de entrelaçar as amoreiras e subi a limpar o pátio dos cães ouvi, sob a varanda, as primeiras vozes auspiciosas..- É só uma mãozinha! - ralhava um miúdo para outro..E logo um coro de crianças:.- Uma só! É uma só!.Achei bom augúrio. Por aquela altura, já se teria espalhado a notícia: não havia baldes de água nem câmaras de filmar para os apanhados. Só o Melville, ladrando alucinado sobre o parapeito, ainda os assustava um pouco, pelo que o substituí pela Jasmim, sempre feliz, e fui aos restantes afazeres..Quando desci à garagem, para rachar umas achas, apareceu-me à porta um miúdo gordinho:.- Pão-por-Deus..Respondi:.- Há uma saquinha no portão. Podes tirar..Ele pareceu achar normal. Aproximou-se, tirou uma mão-cheia de rebuçados e levantou a cabeça:.- Se calhar, agora vou ali à casa da avó da Juliana..Depois apareceram crianças de todos os tipos - sozinhas, em grupos e algumas até sem a companhia dos pais sobreprotectores ou ociosos..Eu já estava ao computador, mas de vez em quando ia à janela. Vieram miúdos da Fonte Faneca, do Bairro Social e da Canada da Francesa. Vieram betinhos, camponeses e rufiões - até um com um capacete na cabeça, deixando claro que chegava a pé mas já tinha mota..A saca continuava lá, esvaziando-se com parcimónia..Desci a reabastecê-la. Uma mãe bonita viu-a, riu-se muito e eu, baboso, achei que era para mim. Regressei ao trabalho, fiz um intervalo para ir ver o meu pai e, apanhando-me a falar com o Chico, a Maria da Guida assinalou:.- Já tirámos a nossa mãozinha..- Já tirámos a nossa mãozinha - repetiu outra menina..Fui reabastecer de novo. Depois vieram a Vitória e a Luísa, lá de baixo da Canada da Luz, e reabasteceram também, às escondidas..Elas e outros, provavelmente, porque às 13h00, quando desci a afixar um letreiro que dizia "Para o ano há mais!", com um smiley no fim, ainda restava uma dúzia de bombons: alguns dos piorzinhos que eu lá tinha deixado, mas também caramelos de fruta e beijinhos Hersheys, daquele da Base, que não é costume haver cá em casa e o meu médico me matava se me apanhasse agora aqui a debicar..A saquinha, essa, estava intacta. Os vizinhos, como a Catarina, não queriam acreditar. O único problema era que todo o dia eu me preparara para escrever um texto com um remate cínico, convencido de que o diacho da saca acabaria por desaparecer, e afinal os miúdos haviam-se comportado exemplarmente..Tinha-os imaginado a açambarcar rebuçados às carradas. Tinha-os imaginado com fisgas, a disparar bombons uns aos outros. Tinha imaginado um pai todo campeão, filando-me a saca em frente ao próprio filho e zarpando os dois de mansinho, com um ar malandro:.- Trouxa!.Mas ela ali estava, a saquinha azul - linda ainda, tão limpa como quando a Clara no-la mandara de Braga, cheia de guloseimas de cuja existência o meu médico também não soube. E, por muito que me esforce, não encontro uma razão para não relacionar o facto de ela ter permanecido ali com a urgência de proteger o Pão-por-Deus da voragem do Halloween.